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CRÍTICA [CINEMA] | "O Agente Secreto", por Kal J. Moon

Escrito e dirigido por Kleber Mendonça Filho, estrelado por Wagner Moura e grande elenco, o já premiado filme “O Agente Secreto” aborda um assunto bem conhecido do público brasileiro sob uma óptica inusitada. Mas por que audiências estrangeiras gostaram tanto dessa produção? 


Justiçamento sépia
Kleber Mendonça Filho é um diretor "complicado", do tipo que ou se ama ou se odeia - mas nunca deixa a audiência indiferente. Iniciou a carreira como crítico de cinema, produziu curtas-metragens e arrebatou o mundo com obras díspares como “O Som Ao Redor”, “Aquarius”, “Bacurau”, "Retratos Fantasmas" e, agora, “O Agente Secreto” chega ao circuito nacional devidamente laureado do outro lado do mundo, além de considerado um dos franco favoritos ao cobiçado Oscar em diversas categorias. Mas o produto audiovisual entregue justifica tamanha euforia? Bem...

Na trama  - que se passa no longínquo Brasil do ano de 1977 -, Marcelo se muda para Recife (PE) a fim de fugir de um passado violento, mas percebe que está se tornando um agente do caos.

O pequeno texto descrito acima trata de apenas parte da premissa desta obra, uma vez que a história, de fato, só será "montada" ao final da última fala de um personagem, fazendo com que o roteiro do próprio diretor se torne um daqueles quebra-cabeças com numerosas peças (mas que a caixa, com a ilustração na tampa, se perdeu há muito tempo), que exige bastante paciência para formar a figura final.


Semelhante ao que o veterano escritor Stephen King costuma implementar em sua literatura, são apresentadas muitas variáveis narrativas, aclimatações, DIVERSAS apresentações de personas distintas - que não necessariamente terão importância na trama central -, novos cenários... E a audiência se comporta exatamente como seu protagonista: sem saber para onde prestar atenção ou o que lhe espera mas prosseguirá com sua investigação, até ter alguma resposta minimamente satisfatória.

Além disso, o texto é multitemático - o que também denota a direção escolhida, privilegiando não a mais bela interpretação mas a "verdade" de cada cena. Aborda tópicos como violência urbana implementada por esquadrões de extermínios na década de 1970, disputas de esferas de poder, conflitos geracionais, um pouquinho de ditadura, corrupção (em diversos níveis), a boa e eterna luta de classes, favorecimentos às elites (mesmo para quem comete crimes), abandono parental, sucateamento do aparelho público, a paranoia de quem sabe que seu tempo está contado e, claro, censura. Por isso mesmo, a atenção tem que ser redobrada, a ponto de, se perder o menor detalhe, corre-se o risco de não compreender o objetivo da proposta.


O roteiro também explora símbolos inusitados (usando e abusando de flashbacks) como o já citado telefone, tubarão - remetendo, inclusive, visualmente ao filme "Tubarão" (de Steven Spielberg, 1975) - e... pernas. Além disso, uma bem vinda metalinguagem faz com que o cinema mundial tome parte da trama, contando parte da história através de olhares estrangeiros. E seu polêmico e bastante anticlimático desfecho pode ser considerado como o ponto baixo da produção - principalmente por vir seguido de um clímax que faz qualquer cinéfilo lacrimejar de emoção. O cineasta conta sua história como quem o faria nos anos 1970 mas com o domínio de quem viveu a época - porém com um olhar que será perfeitamente compreensível a olhares estrangeiros. E, curiosamente, com tiradas bem espirituosas para sua lavra...

O personagem interpretado por Wagner Moura (do recente filme "Guerra Civil") excede o clichê das “muitas camadas” e se torna um ser complexo, cujo objetivo vai além de apenas sobreviver após uma ameaça de morte - quer descobrir suas origens, custe o que custar. Mas, para isso, precisará justificar o título do filme, infiltrando-se no covil do inimigo até conseguir parte de seu intento - ou morrer tentando. O que só se justifica com algumas falas espalhadas pela obra e reminiscências da própria audiência em lembrar como era o Brasil pré-internet, quando fotografias eram artigos de luxo, a comunicação era analógica (telefone, carta, telegrama, bilhetes, fitas cassete) e as lembranças de pessoas queridas que se foram há muito tempo não podem ser revisitadas mesmo quando se deseja...


Entende-se porque a crítica gringa caiu de amores por Moura em sua performance mais desafiadora. Seu personagem expressa uma coisa, sente outra mas gostaria de fazer uma terceira - num tripé emocional que apenas baluartes conseguem dominar com maestria -, porém não é algo tão perceptível a olhos não treinados por não ser aquele tipo de interpretação que externa boa parte dos sentimentos, é mais algo construído por olhares, delicadas micro reações e até desconforto postural. Não seria difícil imaginar uma indicação de melhor ator no Oscar e em outros festivais estrangeiros tão importantes - afinal, já ganhou recentemente como melhor ator em Cannes.

Outro grande destaque do elenco é Tânia Maria (de "Bacurau"), que encarna Dona Sebastiana, uma sagaz septuagenária que, com pouquíssimo tempo de tela, rouba a atenção de TODAS as cenas que aparece - e, sinceramente, diz tanto com tão pouco que boa parte do público gostaria de assistir a uma prequela que contasse a história pregressa da personagem quando foi "comunista e depois anarquista" (ou o contrário). A câmera é dela mas ela mesmo nem liga - só faz bem seu serviço e parte para outra cena como quem coloca tempero em outra panela enquanto a primeira está quase pronta. Também não seria de se estranhar se viessem indicações a prêmios de melhor coadjuvante.


Infelizmente, Alice Carvalho (de "Cangaço Novo") aparece bem pouco mas também tem seu momento de brilhar, sendo o pilar das motivações da trama. Entrega algo entre o gradual emputecimento e a explosão própria do ferido orgulho nordestino - que, semelhante ao carioca, não se quer estar por perto quando ocorre. Não se espera menos de uma das melhores atrizes de sua geração.

Dentre os antagonistas, há quatro destaques. Robério Diógenes (de “Cine Holliúdy 2 – A Chibata Sideral”) interpreta o delegado bonachão porém muito respeitado Euclides, trazendo aquela sordidez própria de quem tem (mas não detém) poder. Tem viés racista (duas cenas meio que evidenciam isso, mas de forma sutil) e admira o militarismo, ainda que de outros países (como nazistas alemães - mesmo sem saber que na verdade era um judeu). 


Roney Villela (de "Tropa de Elite 2") dá vida àquele típico cumpridor de ordens (por um preço que considera justo) que delega a função para que outrem execute pois não é capaz de fazer o serviço sujo... Luciano Chirolli (da minissérie "Desalma") é o inescrupuloso e vingativo que quer a cabeça do personagem de Wagner Moura. Sua motivação é apenas resolver de forma brutal seu desagravo mútuo do passado - por questões de se achar superior por conta de sua hierarquia numa estatal. É o típico escroque que quer vencer pela força mas não vai sujar as mãos para alcançar seus objetivos - e, infelizmente, por ter muito dinheiro e respeito, sempre estará nas esferas mais altas do poder.

E, por último, Kaiony Venâncio (também de "Cangaço Novo") é "o homem" que precisa de fato executar o serviço sujo que ninguém quer fazer mas quer que seja feito pelo menor preço e protagoniza a melhor cena da obra - ao lado de Gabriel Leone (da recente minissérie "Senna"), que, infelizmente, tem bem pouco a fazer e dizer -, algo digno de um thriller da época em que se passa a história, entregando bem uma composição realista, de respostas secas mas espirituosas - e equilibrando a já mencionada luta de classes.


Conforme dito anteriormente, o elenco é numeroso. Todos estão bem funcionais mas com personagens que tem pouco a dizer ou a fazer que realmente contribua em melhorar a experiência - como Maria Fernanda Cândido (cujo papel é meramente protocolar e poderia ser defendido por qualquer outra atriz de menor renome) ou Isabél Zuaa (que serve apenas para verbalizar o momento mais "fantástico" da trama, num momento de terror que permeia a obra do diretor e roteirista).

A direção de fotografia de Evgenia Alexandrova (do recente filme "Sem Coração") - aliada à precisa montagem da dupla Matheus Farias (de "Marighella") & Eduardo Serrano (de "Boi Neon") -  é um deslumbre. O que foi aquela cena do carro dos matadores mostrada pela traseira, à noite, se "desenhando" aos poucos na tela - como algo que, facilmente, poderia perfeitamente ter sido imaginada numa graphic novel?


A fotografia é não somente funcional mas parte da trama como qualquer elemento escrito, tornando-se mais sombria quando o assunto se torna funesto - repare na cena em que Marcelo conversa com um funcionário do Instituto de Identificação sobre o delegado Euclides, que um simples partilhar de informações sai de um ambiente iluminado para outro em que o chiaroscuro domina -, iluminada mas triste por conta dos pensamentos de seu protagonista, festiva em momentos inusitados porém de forma breve, criando um ambiente reconhecível mas impressionantemente novo para olhares alheios. Além disso, também é uma fotografia cromática em que os tons da bandeira do Brasil se destaca em diversos frames - pode reparar que alguns takes são amarelados, outros esverdeados, alguns azulados e uns privilegiam o branco.

Trilha sonora extraordinária - composta pela dupla Mateus Alves (de "Aquarius") & Tomaz Alves Souza (também de "Bacurau"), misturando sons nordestinos com clássicos, num amálgama muito bem vindo. Daquelas que funcionam muito bem, mesmo longe da exibição. É marcante, bem executada e assobiável. E somando-se a standards setentistas (e de outras eras) do quilate de Donna Summer, Chicago e Ennio Morricone (a seminal "Guerra e pace, pollo e brace", trilha do filme "Obrigado, Tia", de 1968), lado a lado a bastiões brasileiros como Angela Maria, Waldir Calmon, Waldick Soriano, Zé Ramalho, Conjunto Concerto Viola, dentre outros. Coisa fina.


O design de produção de Thales Junqueira (do excepcional "Homem com H"), o figurino de Rita Azevedo (de "Divino Amor"), a maquiagem de Marisa Amenta e o penteado de Viviane Lago (ambas do filme vencedor do Oscar "Ainda Estou Aqui") compõem um conjunto coeso na firme missão de reconstituir uma época e diversos ambientes com uma precisão impressionante - adicionando veículos antigos como fuscas, variantes, veraneios (vascaínas, como na canção) e corvettes, cortes de cabelo e bigodes típicos da época, rememorando um tempo de nossos pais, avôs ou bisavôs.

O único senão da produção dentre os aspectos técnicos ficam para as próteses utilizadas nas cenas do tiroteio, aparentando uma estética bem falsa. O mesmo vale para o seguimento "fantástico" que utiliza bastante CGI mal construído.

O Agente Secreto” é um filme cheio de pirraça - no bom sentido -, com forte assinatura autoral, que traz uma incômoda mas necessária cutucada numa ferida histórica do Brasil de uma era que não existe mais mas que ainda teima em reverberar nos diversos movimentos pós-modernos de preconceito. Talvez desagrade bastante a quem procura histórias palatáveis e soluções fáceis de digerir. Assista, reflita, reveja se achar necessário e tire suas próprias conclusões.




Kal J. Moon nasceu em 1976 e sorriu quando percebeu que o primeiro fotograma do filme tratava-se de uma fotografia em branco e preto do grupo humorístico "Os Trapalhões"...

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