Subscribe Us

CRÍTICA [CINEMA] | "A Própria Carne", por Kal J. Moon

Dirigido por Ian SBF, estrelado por nomes como Luiz Carlos Persy, Jade Mascarenhas, Jorge Guerreiro, Pierre Baitelli, George Sauma e Eber Inacio, o filme “A Própria Carne” é um raro exemplar de terror independente brasileiro a ganhar alguma notoriedade fora do circuito de festivais e a investir num tipo de narrativa fora do usual no cinema brasileiro. Mas o quanto isso é bom? 

Devotos do Velho Guerreiro
Quando foi originalmente anunciado em 2024 que a equipe do grupo criativo Jovem Nerd estaria à frente de um novo filme de terror, logo a imensa legião de fãs entrou em polvorosa com as possibilidades. E quem acompanha os episódios dos podcasts de RPG comandados por Alexandre “Jovem Nerd” Ottoni e Deive “Azaghal” Pazos, já imaginavam que o terror iria para o lado do que já foi estabelecido na literatura por H.P. Lovecraft ou o que foi popularizado nos quadrinhos por Mike Mignola (criador do personagem Hellboy, dentre muitos outros). E, diferente do que alguns acham, os fãs estavam certos.

Para efeito de comparação, os filmes derivados de roteiros do grupo Casseta & Planeta precisaram “amaciar” bastante sua lavra humorística quando chegaram aos cinemas para, supostamente, serem mais acessíveis (e, também, terem classificações indicativas mais brandas). Inversamente proporcional ao que acontece com o grupo Jovem Nerd, que desvencilha-se da tradicional aventura descompromissada e recheada de momentos humorísticos para trabalhar uma trama enxuta e que se preocupa em expandir o que pode ser considerado o início de um universo compartilhado - uma vez que o filme faz parte de um projeto crossmedia, contando em breve com o lançamento de uma graphic novel que mostrará parte do passado dos personagens sob uma óptica que não teria como ser explorada no cinema.

As primeiras imagens divulgadas de “A Própria Carne” já denotavam que a produção se afastaria do que é feito comercialmente em matéria de cinema no Brasil. E o primeiro teaser - assim como o primeiro trailer - também já explorava o real significado em inglês da palavra (”instigador”, “causador de curiosidade”). Mas o quanto a obra entrega nas telonas corresponde à expectativa criada desde o anúncio oficial? Depende, principalmente, do que se espera.

Na trama - que se passa durante a Guerra do Paraguai, por volta de 1870 -, três soldados desertores lutam pela sobrevivência à sua maneira e encontram uma casa isolada na fronteira, habitada apenas por um fazendeiro misterioso e uma jovem, que acaba se transformando num pesadelo quando os soldados descobrem que o local esconde segredos macabros...

O roteiro escrito pelo trio Ottoni, Pazos e o próprio SBF explora mais o suspense psicológico - com uma bem vinda pitada do terror social, algumas cenas gore bem explícitas e, no terço final, um breve lampejo de terror cósmico - do que o que se convenciona chamar de “filme assustador” nos dias de hoje.


E, talvez, quem sabe, o grande público talvez não “alcance” a mensagem transmitida ou tenha dificuldade em “embarcar” nessa viagem - que anda nos ombros de gigantes e tem influências claras do que é feito no cinema argentino, aclimatações que parecem advindas de Kubrick ou Eggers, com alguma verborragia (e paráfrases) que remete a Tarantino (principalmente na cena do jantar à mesa) e uma pitadinha de humor ácido que vem do que Raimi estabeleceu na saga "Evil Dead"... Mas, o mais importante: sem parecer um pastiche.

Por exemplo, há uma reclamação por parte da crítica brasileira dizendo que a obra não explora adequadamente o período da Guerra do Paraguai ou as motivações para serem desertores. Sendo que o texto explica a motivação do trio de soldados para desertar - textualmente e graficamente. Aprofundar-se nas batalhas da Guerra do Paraguai implicaria numa desnecessária "barriga" de roteiro, além de criar diversos gastos - efeitos especiais de explosão, uma quantidade maior de figurantes, coreografias de batalha, talvez mais câmeras para filmar de diversos ângulos, um mapeamento de captação de áudio mais elaborado, efeitos sonoros - que a produção não teria condições de arcar. E o resultado mostra que essa exposição não fez a menor falta.


Outra preocupação que o roteiro não busca é trazer regionalidades de fala aos personagens. Tem quem diga que é carioca, paulista... Há uma suspeita que um seja sulista e alguns que não se sabe exatamente de onde vieram, mas isso não é demonstrado na prosódia, provavelmente para tornar a trama um pouco mais acessível a todos os públicos, sem esbarrar em palavras pouco usuais nos dias de hoje - talvez por conta de Ottoni e Pazos não terem os habituais vícios do audiovisual brasileiro, o que confere um certo "frescor" à sua lavra.

Talvez o único "senão" da trama esteja no convencimento da intenção de alguns personagens. Não que seus objetivos não estejam claros mas, em pelo menos um, cabe a pergunta "por que diabos ele está fazendo isso?!". Entretanto, trata-se de um clichê de diversos filmes de terror sendo repetido - e não podemos nos esquecer que clichês são utilizados com frequência porque... funcionam. 


Além disso, o encerramento da trama pode ser considerado altamente divisiva - com parte do público julgando a experiência como insatisfatória por conta do gancho no final do terceiro ato. Porém, independente do que se espera, é um filme com uma forte assinatura e que não facilita as coisas à audiência, deixando que cada pessoa monte o “quebra-cabeça” narrativo sem explicar tudo de forma gratuita (a explicação vem mas, nem sempre, é completa - ou, pelo menos, não é explícita). 

A direção de Ian SBF (que começou nos quadrinhos independentes, profissionalizou-se como cocriador e diretor de projetos como as esquetes e filmes da trupe humorística Porta dos Fundos e a série animada "Sociedade da Virtude", além de ter coescrtio e dirigido o ótimo - e subestimado - filme “Entre Abelhas”) é segura, conduz tudo com economia de takes mas favorece a pluralidade de performances do elenco de acordo com o que o roteiro pede. Definitivamente, não é o tipo de filme que se espera uma grande atuação de apenas um ator ou atriz mas sim de pequenos grandes momentos que corroboram para completar a narrativa - óbvio que existem cenas que se destacam (pelo menos DUAS deixam espectadores na ponta da poltrona!) mas o objetivo principal é contar a história da melhor forma possível. Há um comprometimento real nisso...

O elenco está afiado e consegue entregar a confusão de estar numa situação que não entende bem o que está acontecendo - assim como a própria audiência. Talvez os dois grandes destaques sejam mesmo Luiz Carlos Persy (experiente dublador, que, recentemente, coprotagonizou a audiossérie "França e o Labirinto") e Jorge Guerreiro (da cultuada minissérie "Justiça"), cujos personagens estão em lados opostos em seus objetivos e ambos precisam escolher o que fazer (e o resultado não será nada bom para ambas as partes). A dupla protagoniza “a” cena mais enervante da obra e entrega, com maestria, o necessário para que o público reaja de acordo com a mise-en-scène proposta.

Outro nada óbvio destaque vai para o ator Eber Inacio, que interpreta um personagem que não pode falar mas sua atuação entrega bastante através do olhar e da composição física, em gestos minimalistas, como uma importante peça da narrativa (principalmente no terço final). Merecia mais destaque na trama.

Jade Mascarenhas (de breves participações em séries ou novelas mas que também está no elenco do vindouro filme "O Homem de Ouro") interpreta uma vítima das circunstâncias, com um pezinho na perda de lucidez. Está correta em cena e também tem seu momento de brilhar - pena que o roteiro lhe entregue algo um tanto óbvio em matéria de construção...

George Sauma - mais afeito à comédia por conta de suas participações em programas humorísticos como "Toma Lá Dá Cá" - entrega, talvez, o personagem com o arco narrativo mais humanamente plausível. Sai de algo mais contido para uma energia que não se suspeitava que tinha, encerrando sua participação apenas vaticinando o que havia sido dito sobre sua conduta anteriormente pelo antagonista, perfeitamente correto dentro da proposta. O ator Pierre Baitelli (da série "Magnífica 70") também convence como o obstinado líder da equipe, mais preocupado em "resolver o enigma" do que necessariamente em sobreviver.

A trilha sonora criada por Bruno Gouveia (não, não é o vocalista da banda Biquíni Cavadão - já pensou? - é aquele profissional mais conhecido como Govis, também da recente audiossérie "França e o Labirinto" e da série "Amor da Minha Vida") é imersiva o suficiente para causar o tal desconforto necessário à trama - além de funcionar perfeitamente além do filme.

Utiliza-se de alongadas notas de instrumentos de corda - que remetem à tradicionais canções sulistas (com ecos sutis ao que foi feito anteriormente por James Newton Howard e o vencedor do Oscar Hans Zimmer em "Batman - O Cavaleiro das Trevas") - para compor uma atmosfera que enerva aos poucos, numa organizada cacofonia, gerando o suficiente para o suspense esperado neste tipo de história. Essa trilha sonora e, talvez, o personagem mais importante da trama.

Já a direção de fotografia de Vinicius Brum (egresso de curtas-metragens e documentários, já trabalhou nos recentes filmes "Ciclos" - ao lado de SBF - e "Desapega!") é funcional, com bom uso de chiaroscuro e mais de iluminação natural do que realmente deveria. Mesmo que haja alguns takes que se utilizem de visuais que remetem a quadros ou antigas fotografias, o que é feito aqui é bem básico: planos estáticos, closes, planos de estabelecimentos, mais closes, mais planos estáticos, zoom out, zoom in... O que torna a narrativa um tanto pobre para um filme do gênero - e muito presa ao que foi estabelecido previamente em storyboards. Mas em pelo menos uma cena - que tem a ver com o personagem de Sauma - há uma bem vinda inventividade.

O reduzido figurino criado por Carol Scortegagna (do filme "Ainda Somos Os Mesmos") é interessante até certo ponto. Os uniformes militares, por exemplo, estão muito "novos" - na maioria dos casos - para quem está em situação constante de batalha há algum tempo. Já as roupas civis convencem mais como algo que já foi usado constantemente. Também funciona, dentro da proposta.


O design de produção comandado por Martino Piccinini (do especial de TV "Globo 100 Anos") igualmente traz bastante imersão através de detalhes cênicos que tem importância na trama como cadeados, ferrolhos, correntes e até ferramentas como martelos e marretas - não são simples adereços de cena, fazem parte da história a ser contada. E quando utilizados, surpreendem.

E que A-CHA-DO foi encontrar uma casa local para filmar externas e cenas internas, trazendo maior credibilidade do que se fosse montar um cenário inteiramente funcional para que se coubessem câmeras, microfones e afins - mostrando que a produção não tinha tanto dinheiro mas usou de bastante criatividade para trazer aquele "mundinho" à vida.

Vale também exaltar o trabalho de Matheus Fernandes (editor de som dos diálogos) e Marcos Lopes (técnico de som da produção), que confere a cada diálogo, cada nota mais "rouca" da voz dos personagens - principalmente nas falas proferidas por Persy -, cada explosão ao longe ou rangido de portas e pisos de madeira, uma dimensão muito mais imersiva do que normalmente aconteceria no audiovisual nacional. E não podemos deixar de citar a maquiagem criada por Luana Zinn (do cultuado filme "O Cemitério das Almas Perdidas"), totalmente crível e que passa por imperceptível em diversos momentos - como no caso do ferimento à bala e até falsos melasmas no rosto de personagens...

Dito tudo isto... “Então, o filme é bom ou ruim?”, pode perguntar o incauto poltronauta. A resposta ainda é “depende”. A experiência pode ser satisfatória se a procura for por algo diferente do que é realizado no audiovisual brasileiro. Mas se o desejo for por algo mais formulaico, "com tudo muito bem explicadinho, nos seus mínimos detalhes", aí, talvez, essa obra não seja adequada.

Vale ressaltar que “A Própria Carne” não é o tipo de filme que se crie uma grande expectativa para ser "bom" e cair em frustração em seguida mas, sim, uma peça que deve ser assistida com parcimônia, receber o que foi entregue pelo conjunto da obra e decidir como avaliar a experiência, depois de muito ruminar sobre os temas apresentados. Vai muito na contramão do que o cinema independente brasileiro entrega em matéria de entretenimento e até busca questionar o status quo deste tipo de produção.

Ainda assim, terá que vencer boa parte do preconceito do público comum - aquele que, talvez, não queira pensar muito para compreender uma história - a fim de alcançar o objetivo de se estabelecer como um potencial sucesso na seara do que é atualmente feito no cinema brasileiro. Afinal, parafraseando Abelardo Barbosa (1917-1988) - vulgo “Chacrinha” ou “Velho Guerreiro” -, “A Própria Carne” “não veio para explicar, veio para confundir”. Mas é uma muito bem vinda confusão, pra deixar bem claro. Assista e tire suas próprias conclusões - ou não.



Kal J. Moon não teria sobrevivido à Guerra do Paraguai... Nem com ajuda de um amuleto.

Em todo o site, deixamos banners de sugestões de compra geek, mas você pode nos ajudar fazendo uma busca através destes links, e deste modo poderemos continuar informando sobre o Universo Nerd sem clickbaits, com fontes confiáveis e mantendo nosso poder nerd maior que 8.000. Afinal, como você, nós do portal Poltrona POP já éramos nerds antes disso ser legal!