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CRÍTICA [STREAMING] | "Frankenstein", por Marlo George

A versão de Guillermo del Toro para Frankenstein, escrita e dirigida por ele, não é meramente uma adaptação do clássico de Mary Shelley (1797-1851), mas sim uma meditação lírica e emocional sobre a tragédia do abandono e do orgulho desmedido. Estrelado por Oscar Isaac, Jacob Elordi, Mia Goth, Christoph Waltz e Charles Dance, o filme é uma obra de arte técnica que propõe um ousado universo narrativo alternativo.

Para entender a ousadia de del Toro, é essencial retornar à origem da obra de Mary Shelley, publicada anonimamente em 1818, com um prefácio escrito por seu marido, Percy Bysshe Shelley. A história nasceu de um desafio entre a jovem escritora, Percy Shelley e Lord Byron em um verão chuvoso na Suíça. No entanto, a semente intelectual da criação do monstro foi plantada por conversas sobre os avanços científicos da época. Shelley menciona em sua introdução que os debates giraram em torno da "natureza e princípio da vida, e se havia alguma possibilidade de sua descoberta e comunicação."


Um catalisador específico para a ideia do "Prometeu Moderno" foi o Dr. Erasmus Darwin (1731–1802), avô do lendário naturalista Charles Darwin. Erasmus era um sujeito notavelmente incomum para a época: um médico, naturalista e teórico cujas ideias sobre a origem da vida eram radicais e influentes. Shelley menciona ter ouvido falar dos experimentos de "Dr. Darwin" – embora ela própria tenha admitido que o que ouviu era, provavelmente, uma versão distorcida e exagerada sobre a possibilidade de se criar "naturalmente" vida do absoluto nada. A simples ideia de que um homem pudesse animar a matéria morta, mesmo que baseada em um boato científico, aterrorizou e inspirou Shelley, servindo de base para a ambição desmedida de Victor Frankenstein.

Embora a publicação anônima de obra literárias fosse um procedimento relativamente comum para autores estreantes, no caso de Mary Shelley, refletia as convenções da época, que frequentemente relegavam as obras de mulheres escritoras a um escrutínio mais duro ou à incredulidade de que pudessem conceber uma narrativa de tamanha profundidade e horror. O prefácio de Percy Shelley endossava a seriedade do trabalho, mas a atribuição à jovem Mary Shelley só seria feita em edições posteriores. Esse anonimato inicial destaca o contexto em que a obra foi concebida — um mundo onde a ciência era revolucionária, mas a voz feminina ainda precisava lutar para ser reconhecida. Para nossa felicidade, Shelley acabou se tornando a escritora que inaugurou o gênero da ficção científica.


Sobre a Ousadia do Roteiro e Estrutura Narrativa

O roteiro de Del Toro é o ponto de maior desvio e fascínio. Em vez de recontar a origem, o filme inicia-se in media res, exatamente no epílogo do livro original (a sequência epistolar), criando uma sequência que, conscientemente, conflita com o cânone.

A trama começa com o Doutor Victor Frankenstein (Oscar Isaac) em fuga no Ártico, resgatado pela tripulação do Capitão Anderson (Lars Mikkelsen) em um navio preso no gelo. A ausência de maior contextualização para o imediato auxílio do Capitão a Victor é uma pequena licença poética que Del Toro usa para dar início à estrutura de testemunhos conflitantes, que é a verdadeira arquitetura narrativa do filme (e que remete ao formato epistolar de Shelley). Victor inicia um longo relato sobre sua história, mas, de forma crucial, o filme eventualmente permite que a Criatura (Jacob Elordi) também narre a sua versão dos fatos, um elemento que confere uma profundidade emocional e fidelidade ao espírito de Shelley, que focava na dupla perspectiva da tragédia.


A Criatura, nesta versão, tem características físicas que reforçam seu status de ser "não-natural", incluindo uma força descomunal que a distancia da fragilidade inicial de outras adaptações, mas que, paradoxalmente, ressalta a crueldade do abandono.

Vale ressaltar que, a ousadia de Del Toro em mudar a narrativa é benvinda, pois, reside, principalmente, em corrigir uma inconsistência notada no clássico de Mary Shelley. Enquanto a autora foi genial ao conceber a premissa, apontamos que ela foi menos hábil em diferenciar a "voz" da Criatura da voz do Dr. Victor Frankenstein; ambos, no livro, frequentemente compartilham um tom de oratória e eloquência idêntico. O roteiro de Del Toro, ao contrário, faz um trabalho mais eficaz em outorgar à Criatura uma linguagem corporal e verbal própria, que é inicialmente inocente e gradualmente se torna articulada e dolorosa, mas que, crucialmente, nunca se confunde com o tom arrogante e egocêntrico de Victor. Essa distinção narrativa não apenas torna a Criatura um personagem mais autônomo e verossímil, mas também intensifica o quanto ambos são, apesar das diferenças, reflexos um do outro.


Del Toro
transforma a história de ambição Prometeica (Prometeu é o titã que rouba o fogo da vida para dar aos humanos, sendo punido por Zeus por isso) em um estudo aprofundado sobre o trauma familiar e o terror do abandono emocional. Victor Frankenstein é retratado não como um jovem cientista ingênuo, mas como um médico de meia-idade, calejado e obcecado, com um passado de relacionamento severo e distante com seu pai, o Barão Leopold Frankenstein (Charles Dance), e a perda da mãe.

Ao rejeitar a Criatura, Victor repete o ciclo de negligência que o moldou, tornando-se, de fato, o monstro moral da história. O filme não o vê apenas como um "cientista louco", mas como um homem que tenta controlar a morte e, ao falhar em nutrir sua criação, projeta nela seu próprio vazio. Essa abordagem de Del Toro sublinha que o verdadeiro tema de Shelley não é a criação, mas o custo do desamor.


Um Elenco Primoroso e "Elétrico"

O filme se apoia nas atuações espetaculares. Oscar Isaac entrega um Victor Frankenstein cheio de intensidade silenciosa e orgulho ferido, cuja obsessão pela vida eterna se confunde com sua incapacidade de se conectar com a vida real. Sua performance confere camadas de vulnerabilidade e arrogância.

Jacob Elordi tem um trabalho aclamado como a Criatura. Del Toro, fiel à sua sensibilidade, recusa-se a tratá-la como um vilão, focando em sua humanidade, inteligência e dor — ela é o proscrito filosófico, como já fez com outros monstros de suas obras anteriores, como o Fauno de O Labirinto do Fauno ou o Homem-Anfíbio de A Forma da Água. A Criatura de Elordi é alta, elegante e profundamente melancólica, capturando o cerne da tragédia do ser senciente que busca amor e pertencimento. A dinâmica entre Isaac e Elordi é o coração pulsante e doloroso do filme.


Mia Goth
empresta seu timing excêntrico à Elizabeth, que nesta versão interage de maneira mais direta e intrigante com o tema da vida e da morte, embora seu desenvolvimento não explore toda a complexidade da contraparte literária.

A crítica se mantém quanto ao uso limitado de Christoph Waltz (como Harlander, o mecenas de Victor, que adiciona o subtexto sobre a ciência a serviço do lucro) e Charles Dance (Leopold Frankenstein), que embora cruciais para o background de Victor, não têm tempo de tela suficiente para que seus personagens alcancem seu potencial máximo. O elenco de apoio se completa com nomes como David Bradley (o cego, um aceno à clássica cena do livro) e Burn Gorman (Fritz).


Tecnicamente, o filme é um triunfo que reafirma a identidade artística de Del Toro. A quarta colaboração entre Alexandre Desplat e Del Toro resulta em uma trilha sonora impressionante. Desplat evita o terror em favor de temas líricos, passionais e épicos, utilizando orquestra completa, coro e elementos sutis de eletrônica. A música traduz a nobreza corrompida de Victor e o drama emocional da Criatura, usando a melodia para expressar a energia e o lirismo da narrativa.

Dan Laustsen (outro colaborador frequente de Del Toro em A Forma da Água e O Beco do Pesadelo) pinta o filme com uma paleta de cores frias, góticas e ricas em sombras, transformando cada quadro em uma pintura que comunica isolamento e beleza sombria. O uso da luz, especialmente a luz de vela e a iluminação dramática, é estonteante e essencial para a atmosfera.


Tamara Deverell
(Designer de Produção), Brandt Gordon, Celestria Kimmins e Emer O'Sullivan (Direção de Arte) e Shane Vieau (Cenografia) criam um mundo detalhado e imersivo, fundindo o estilo vitoriano com toques de um laboratório de alta-tecnologia da época, realçando a escala do ambicioso projeto de Victor, numa linguagem que remete ao à estética steampunk, que é sempre sequestrada por Del Toro em seus trabalhos.

O trabalho da figurinista Kate Hawley e do departamento de maquiagem é notável, especialmente na concepção e execução da Criatura, que é ao mesmo tempo repulsiva e profundamente humana.

O filme teve sua estreia mundial no Festival Internacional de Cinema de Veneza em agosto de 2025, seguindo para um lançamento limitado nos cinemas antes de sua estreia global na Netflix, demonstrando a confiança da plataforma na visão irrestrita de Del Toro.

Del Toro, com Frankenstein, entrega uma obra que é fiel ao espírito da obra de Shelley, apesar das diferenças, provando (mais uma vez) ser o diretor ideal para explorar a humanidade no horror e o horror na humanidade.


Marlo George assistiu, escreveu e criou alguns monstros em sua cabeça

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