Dirigido por Craig Gillespie, estrelado por Margot Robbie, Sebastian Stan, Allison Janney e grande elenco - além de recebido três indicações no Oscar 2018 (incluindo Melhor Atriz para Robbie e Melhor Coadjuvante para Janney) -, "Eu, Tonya" mostra que quando tudo tem que dar certo, enfrentamos a vida real. Há uma lição a ser aprendida aqui, pessoas...



Ouro, prata, sangue e lama
Pense numa situação injusta. Imagine a repercussão negativa, impropérios mil e, claro, julgamentos antecipados, raivosos, cegando quaisquer perspectivas para amenizar a situação. Num filme, estes fatos já criam motivos suficientes para uma boa trama. Mas a vida real é sempre mais criativa que o esforço do melhor roteirista existente. Chega-se a essa conclusão ao acabar de assistir "Eu, Tonya". Não é somente um ótimo filme mas um levante contra todas as injustiças cometidas a mulheres que se esforçam para alcançar o primeiro lugar no pódio da vida mas diversos fatores impedem que isso aconteça.

O filme conta a história real da patinadora artística Tonya Harding (Robbie), atleta americana que foi uma das maiores patinadoras no gelo do mundo, mas ficou mais conhecida por ser acusada de planejar um ataque contra Nancy Kerrigan (Caitlin Carver), sua principal rival durante as Olimpíadas de Inverno de 1994, tudo baseado em entrevistas sem ironia, muito contraditórias e totalmente reais com Tonya, seu (agora) ex-marido Jeff Gillooly (Stan), sua mãe LaVona  (Janney) e outras pessoas importantes no ~"incidente".

"Eu, Tonya" é, por si só, um filme diferente - ou "fora da curva", como os moderninhos insistem em chamar. "Diferente" - por falta de palavra melhor - em todos os sentidos pois é uma mistura de gêneros. Pode-se dizer que é uma história de amor? Sim, todos os elementos estão lá - exceto o "final feliz", dependendo do ponto de vista. Seria uma história de superação? Desde o início, vemos a protagonista num esforço hercúleo para conquistar seu lugar ao gelo como ela acha que merece - e ela estava certa pois era uma das melhores no que fazia. História policial? Pois é. Os elementos que compõem uma ótima trama envolvendo um crime, os culpados, as vítimas e as investigações estão todas impressas na tela. E ainda tem o ~"inconveniente" de ser inspirado numa história real, com detalhes absurdamente fiéis ao que aconteceu - e outros inventados que parecem até inferiores se comparados ao que ocorreu na realidade (algumas fontes dão conta de que Gillooly, ex-marido de Tonya, vendeu uma fita íntima deles fazendo sexo, que gerou a publicação de stills dessa fita numa revista erótica, só para se ter uma ideia do que ficou de fora do filme).

Mérito do esperto roteiro escrito por Steven Rogers (de filmes essencialmente românticos como "P.S. Eu Te Amo" e "Kate & Leopold") - diz a lenda que o roteiro de "Eu, Tonya" ficou anos na "lista negra" de "melhores roteiros nunca filmados". O que Rogers faz é pegar um extenso material biográfico e depurar diversas partes para que casem numa narrativa com cronologia bagunçada, indo e voltando no tempo - exatamente como acontece numa conversa informal - para examinar de perto um dos maiores cometidos no esporte mundial. O curioso é que a trama não mostra o ponto de vista da vítima (no caso, a patinadora Nancy Kerrigan, que sofreu o ataque) mas expõe todo o retrospecto da vida de Tonya Harding, sua luta para alcançar posições melhores num esporte que parecia não querer que ela estivesse ali, seus problemas de relacionamento com sua mãe e, posteriormente, com seu marido Jeff Gillooly e seu parceiro Shawn. E mesmo que essa premissa possa parecer "o velho filme de sábado à noite na TV aberta", o que temos é uma bela amostra de como a vida pode ser muito injusta às vezes -  ou quase sempre. Porém, ainda assim, temos diversos momentos muito bem humorados, o que traz leveza à história, mesmo que o que esteja sendo mostrado seja mais mordaz e mórbido do que hilário - em dado momento, o personagem interpretado por Bobby Cannavale - que, infelizmente, não passa de um alívio cômico - diz que não acreditava que era possível "um plano daqueles ser executado por aqueles idiotas numa história repleta de idiotas" (o que acontece faz os sequestradores de "Fargo" parecerem gênios do crime).

O que nos leva a comentar sobre o afiado elenco. O destaque mais óbvio é de Margot Robbie e sua Tonya Harding, uma vez que a maior parte da responsabilidade narrativa recai sobre seus ombros. E ela aceita isso como um desafio a ser obliterado com a violência que o aço castiga as pistas de patinação. Quando Robbie diz em cena que "Eu pensei que ser famosa era legal. Eu fui amada por um minuto. Até que me odiaram. Então veio a sentença. Foi como ser abusada novamente. Só que, dessa vez, foi por você. Todos vocês. Todos vocês abusaram de mim", entendemos a verdade de sua personagem como algo inevitável, como se ela tivesse nascido para perder. Muito do que vemos em suas cenas não é nada bonito de se ver mas Robbie demonstra um amadurecimento tamanho que é impossível não se comover - ou se indignar - com sua personagem. Indicação merecidíssima ao Oscar 2018 de Melhor Atriz numa poderosa e contagiante performance - mesmo que ela não seja NADA parecida com a Tonya real (e ainda é mais alta) - sabe a primeira foto que ilustra essa crítica? Diz tudo sobre a interpretação de Robbie, desconstruindo a epítome do artista qual um pícaro (quando chegar a cena, vocês vão entender o que quero dizer). Não tem como não citar o trabalho de composição realizado por Allison Janney como LaVona, a rigorosa, violenta e abusiva mãe de Tonya. Janney utiliza-se não apenas de figurino extravagante e maquiagem pesada (além de um par de óculos simplesmente medonho) mas também de um tom de voz monocórdico, digno de quem fumou durante décadas e não está nem aí para a opinião alheia. Ganhou o Globo de Ouro 2018 por sua atuação e é forte candidata ao Oscar 2018 de Melhor Coadjuvante. Curiosamente, durante toda a exibição, desconfia-se que Paul Walter Hauser está exagerado no papel de Shawn. Ledo engano. Quando chegamos aos créditos e assistimos trechos das entrevistas reais, percebemos que a composição criada por Hauser é perfeita por ser extremamente fiel ao Shawn da vida real - sério, é impressionante, não saia do cinema até ver os créditos. Já Sebastian Stan - que interpreta Jeff Gillooly, ex-marido de Tonya - é esforçado e está bem, embora sua atuação seja completamente ofuscada por todos a seu redor. E Caitlin Carver, que interpreta a vítima Nancy Kerrigan, desempenha um papel meramente ilustrativo, quase uma figurante de luxo, uma vez que sua personagem nem tem falas durante toda a exibição.

A inspirada direção de fotografia comandada por Nicolas Karakatsanis (de diversos curtas e o recente "Polícia em Poder da Máfia") vale de momentos cromáticos e saturação para compor takes belíssimos e contrastantes com a trama - em determinados momentos entre Tonya e sua mãe, por exemplo, temos uma paleta baseada em tons de marrom para gerar um ambiente "confortável" porém sempre existe atrito - verbal ou físico - entre as personagens. Em outras cenas, vemos cores berrantes como vermelho ou rosa choque - muito usado nos anos 1980 e 1990 - sobressaindo para avisar o espectador de que há perigo iminente. Porém nada disso seria eficiente se não fosse a esmerada edição executada por Tatiana S. Riegel (que participou da equipe do clássico "Pulp Fiction" e está indicada ao Oscar 2018 por "Eu, Tonya"), que casa perfeitamente cenas que, a princípio, não fariam sentido, criando uma "rima visual" rica, parcimoniosa e muito bem esquematizada.

A trilha sonora divide peças compostas por Peter Nashel (de seriados como "Marco Polo") belíssimos petardos do cancioneiro rock e pop dos anos 1970 e 1980 como "Barracuda" (Heart), "Gloria" (Laura Branigan), "Goodbye Stranger" (Supertramp), "The Chain" (Fleetwood Mac) e terminando adequadamente ao som de "The Passenger", uma versão inspiradíssima de Siouxse and The Banshees. Nenhuma canção está gratuitamente no filme pois cada uma tem algo a dizer sobre momentos específicos da trama - mas, infelizmente, não foram traduzidas na legenda.

E, lógico, não podemos deixar de falar do trabalho esmerado de direção de Craig Gillespie (de filmes "diferentes" como "A Garota Ideal" e "Horas Decisivas"), que conduz toda a narrativa enfiando dedos na ferida, como não como qualquer veículo sensacionalista faria mas como alguém que busca a verdade não-dita. Seu maior mérito é comandar cenas que poderiam facilmente cair no clichê dos grandes injustiçados da História para mostrar malabarismos narrativos bem interessantes em cenas curriqueiras, trazendo algo sempre especial à trama. Isso sem contar que conseguiu extrair possivelmente o ponto mais alto da carreira de Margot Robbie e Allison Janney, o que não é pouca coisa...

(Curiosamente, Gillespie - que trabalhava com publicidade - tinha acabado de fazer um comercial para a Sopa Campbell com... Nancy Kerrigan três meses antes do incidente! Não existem coincidências, baby...)

Se nada do que foi dito lhe convencer de ir ao cinema assistir "Eu, Tonya", pense no seguinte: é um dos melhores filmes de 2017, não foi indicado ao Oscar 2018 à toa - tanto que foi totalmente esnobado na categoria de Melhor Roteiro e Melhor Direção, embora merecesse mais do que alguns indicados - e é aquela história que não é nada bonita mas que merece ser contada porque a lição a ser aprendida aqui é que não importa o quanto você se esforce para ser melhor, sempre terá alguém no comando para te retirar do jogo para favorecer outra pessoa, se for necessário e mais adequado para o negócio. Bem vindos ao deserto do real.




Kal J. Moon nunca pensou que veria Arlequina casada com o Soldado Invernal num filme escrito por um tal de... Steven Rogers! Isso é que é referência!