Escrito e dirigido por Paul Thomas Anderson, estrelado por Daniel Day-LewisVicky Krieps, "Trama Fantasma" é uma verdadeira prova de amor ao ato de fazer cinema.


Desvendando o sorriso de Monalisa

É muito complicado tentar compreender o cerne da capacidade de um artista. Pessoas sem propensões artísticas tendem a desdenhar de alguns rituais e costumes que artistas repetem exaustivamente apenas pela mais simples ignorância. Existir enquanto artista é enxergar um fluxo diferencial para transformar aquilo que só ele - ou ela - vê em algo palpável, seja literatura, artes plásticas ou mesmo algo tão técnico como moda. E "Trama Fantasma" traduz perfeitamente estes dois mundos - a ignorância e a sabedoria artística - de uma forma como somente grandes filmes são capazes.

Na trama, Reynolds Woodcock (Lewis) é um estilista confiante e focado que tira inspiração das mulheres que, constantemente, entram e saem de sua vida. Acostumado a vestir a realeza, estrelas de cinema, socialites e damas, Woodcock vê sua trama perder o rumo quando se envolve com Alma (Krieps), uma jovem de gênio forte que logo se torna um acessório necessário para sua vida e carreira, como musa e amante.

É de comum entendimento que "musa" é uma pessoa que inspira ações, sejam elas quais forem. No caso de artistas, é um pouco diferente. Não falo de artistas que trabalham em regime de produção fabril ou metas designadas por terceiros. Falo de artistas que são procurados quase como deidades, como pessoas de quem se toma a bênção para que crie algo que não exista e somente ele - ou ela - possa executar. Esse tipo de artista é domado por sua "musa". E se sua comunicação com ela tiver algum problema, bem, o processo técnico de execução de sua arte será severamente comprometido.


Paul Thomas Anderson retoma em grande estilo naquele que pode ser considerado seu filme mais centrado, onde não tem a menor pressa de contar sua história mas prefere estabelecer cada personagem a seu tempo, por meio de gestos, olhares e meneios. Tanto roteiro como direção extrapolam os limites da calmaria para entregar o melhor como um banquete que é servido em partes. A princípio, pensamos que parte da história é contada no passado como flashback, por conta de Alma (Krieps) estar contando, numa espécie de entrevista, como é conviver ao lado de alguém tão "diferente". Depois, chega-se à conclusão de que o tempo é entrecortado e distribuído como se deseja, parte no passado, parte no presente e até mesmo no futuro. Não é à toa que concorre ao Oscar 2018 de Melhor Diretor (E Melhor Filme).

"Trama Fantasma" não é daqueles filmes que o espectador tem de descobrir uma informação muito importante para compreensão da história. é uma experiência diferenciada, como saborear um bom vinho ou deleitar-se com uma saborosa sobremesa: é necessário calma para apreender cada degrau a galgar nesta subida íngreme mas intensamente excitante. Personagens muito bem delineados e uma verdadeira construção de "universo" monta-se a olhos vistos, formando um verdadeiro descortinar da psiquê humana.

Destaque às atuações de Daniel Day-Lewis, Vicky KriepsLesley Manville, triunvirato que comanda o filme, em maior ou menor escala, para que cada peça dramática esteja em seu lugar adequado. Lewis entrega, mais uma vez, sua personagem de maneira crível, fazendo-nos acreditar que não é um ator mas um documentário sobre um estilista dos anos 1950, tamanha confiança e detalhes de composição de personagem - e é um dos favoritos ao Oscar 2018 de Melhor Ator. Krieps revela diversas camadas de sua personagem, inciando tímida, assumindo nuances maniqueístas numa segunda investida, encerrando como uma dominadora de marca maior por um motivo duvidoso porém plausível. Já Manville - indicada ao Oscar 2018 de Melhor Atriz Coadjuvante - se destaca muito positivamente por ser uma espécie de extensão da personalidade de Lewis, assumindo seus mandos e executando suas ordens para que nada do status quo saia do controle enquanto ela estiver no comando. Porém, também mostra do que é capaz caso seja ameaçada - apenas seu olhar demonstra muito do que gostaria de dizer.

Num filme sobre o mundo da moda, o figurino criado por Mark Bridges (ganhador do Oscar por seu trabalho em "O Artista" - e indicado ao Oscar 2018 por "Trama Fantasma") destaca-se com belos vestidos mas principalmente por trajes que ajudam a compor as personagens e as dimensões daquele "mundo". A trilha sonora composta por Jonny Greenwood - indicado ao Oscar 2018 por "Trama Fantasma" - é leve, agridoce e motivacional quando tem que ser. Nem uma nota a mais: concisa e equilibrada.

Poderia gastar diversos parágrafos falando sobre a beleza de "Trama Fantasma" mas encerro apenas com a seguinte sentença: o cinema existe para aplacar experiências como essa. E como esse é o filme de despedida de Daniel Day-Lewis, não há forma melhor de despedir-se do que entregar-se por inteiro, mais uma vez.


Kal J. Moon é taciturno, irascível, tacanho, mordaz e odeia conversar pela manhã. Acostume-se...