O novo longa do diretor americano Spike Lee é tão louco e tão crível, que até se parece com a vida real. Isto porque aconteceu de verdade


Sem saber que era impossível, ele foi lá e fez. O acaso fez com que o aspirante a investigador policial Ron Stallworth torna-se real a frase motivacional de para-choque de caminhão que inicia este parágrafo.

Negro, residente de uma comunidade segregada e sem perspectivas de subir na carreira, Stallworth teve a ousadia de iniciar uma investigação sem precedentes que iria lançá-lo à condição de lenda viva. Passando-se por um homem branco, ele conseguiu enrolar e, de certo modo, se infiltrar na sessão da Ku Klux Klan de sua região.

Caso você não saiba, a Ku Klux Klan (também conhecida pela sigla KKK) é uma seita fundamentalista de supremacistas brancos que são intolerantes com minorias, sejam negros, judeus, gays ou qualquer outra coisa que não seja um espelho.

Portanto, a tarefa de Stallworth não seria fácil, não fosse pelo fato dele conseguir imitar o sotaque e maneirismos dos caucasianos, talento que ele usou para conseguir seus primeiros contatos com os klansman ("homens da klan", como são chamados os membros da KKK) através do telefone. Conforme a "intimidade" com os klansman foi ficando maior,sua presença em uma das reuniões da KKK foi requisitada. Como ele mesmo não poderia ir, por motivos óbvios, entra em cena seu parceiro de investigação, Flip Zimmerman, que apesar de ser branco, também teria lá seus próprios motivos para abominar a seita.


BlacKkKlansman ou Infiltrado na Klan (título nacional auto-explicativo e desnecessário) é baseado nesta impressionante lenda urbana da vida real. Dirigido por Spike Lee, que andava sumido do burburinho de Hollywood desde que cometeu o péssimo remake de Oldboy: Dias de Vingança, em 2013, Infiltrados na Klan é mais um dos filmes manifestos que fizeram de Lee um nome de sucesso, como Faça a Coisa Certa, de 1989. Porém, Infiltrado na Klan está mais relacionado à outros filmes do diretor, como Malcolm X (1992) e, mais recentemente, Rodney King (2017) que também eram cinebiografias que tratavam da luta dos negros por igualdade de direitos e respeito.

Com um inicio matador, que traz em destaque Alec Baldwin ao som de Dixie (canção tradicional sulista americana), o filme se desenrola em uma trama que mostra a cena da polarização racial nos EUA em ambos os lados. Se por um lado temos os sacripantas da KKK, por outro vemos o sangue nos olhos dos líderes do movimento pró-direitos civis. Foi com muito tato que Lee tratou do tema, mostrando-nos uma visão que até posso classificar como neutra ou imparcial. Foi bom ver os dois lados da mesma moeda, pois seria muito fácil este filme cair na cilada de tomar partido do movimento negro e acabar sendo interpretado de forma errada, o que poderia acarretar em algum problema pós-sessão. Basta recordar-se do que uma simples eleição presidencial fez (e continua fazendo) com nosso próprio país algumas semanas atrás, quando irmãos e amigos se desentendiam por conta de manobras políticas que polarizaram a população brasileira em nome do bem da pátria.

Vejo como positiva a postura do diretor, que é negro e ativista da causa dos negros por igualdade. No filme temos negros e brancos, e entre eles aqueles que são justos e aqueles que são equivocados. Se a mensagem que Lee queria passar era a de que podemos buscar soluções em conjunto, o recado foi muito bem dado.

Além disso, muito bem-vinda também é a preocupação em mostrar que esta polarização, que aconteceu nos anos 70, era burra e culminava na intolerância. O mesmo está rolando agora, no mundo todo, especialmente nos EUA da Era Trump, quando o número de crimes de ódio vem aumentando a cada dia. Devemos sempre nos lembrar que a história é cíclica e que os erros do passado, se forem ignorados e esquecidos, tendem a se repetir.


Porém, enquanto o roteiro é excelente, mérito de Charlie Wachtel, David Rabinowitz, Kevin Willmott e do próprio diretor Spike Lee, que basearam-no no best-seller de Ron Stallworth, o elenco deixa a desejar.

John David Washington, que interpreta o próprio Stallworth, não é versátil e isso mata muitas das possibilidades da personagem se desenvolver melhor. Washington começou sua carreira como figurante em outro filme de Lee, Malcolm X, porém ele abandonou a carreira por quase 25 anos, tendo retomado-a apenas recentemente, em 2017 no filme Love Beats Rhymes.

Adam Driver dá vida ao parceiro de Stallworth, Flip Zimmerman. Está bem no filme, interessado, bem colocado em cena, mas com uma performance aquém do esperado.

Os minions ou massas de manobra tanto da KKK, quanto dos Panteras Negras, beiram a caricatura. O único que se salva é Paul Walter Hauser, que interpreta um supremacista branco ébrio. Ele já tinha me impressionado em Eu, Tonya, e novamente demonstra talento, sobressaindo-se entre tantos outros atores e atrizes canastrões.

De todo o elenco, bom mesmo está Topher Grace, como o calhorda político David Duke. Impecável, roubando todas as cenas.


Este erro de elenco, injustificável, poderia ter matado um longa que se provará importante. Mas o que esperar de um diretor de elenco que aprova o teste de Nicholas Turturro para um papel de membro da KKK. Sim, ele mesmo. O cara da pipoca de Golpe Baixo (2005). Sério, na boa, Turturro tem a maior pinta de mafioso da cosa nostra, sendo que uma das minorias vitimadas pelo mimimi violento da KKK é a ítalo americana. Seria falta de opção ou de bom senso. Assim não dá pra deixar passar.

Mas vamos falar de coisa boa. A trilha sonora incidental é simplesmente animal e todo o repertório de canções populares que estão presentes durante o filme é muito bem escolhido. A fotografia do filme é bem simples, mas acho que foi uma escolha de estilo, pois o filme remete aos longas de baixo orçamento dos anos 70, especialmente os que exploravam a temática dos negros americanos, como Shaft (1971) e Foxy Brown (1974).

Assumidamente anti-trumpista, Infiltrado na Klan é um filme imperdível, apesar da canelada que foi a escalação de talentos dramáticos. Vale como referência histórica por contar uma história pitoresca, com humor, sarcarmo e seriedade. Tudo na dose certa. O final é de partir o coração. Prepare-se.



Marlo George assistiu, escreveu e é contra qualquer tipo de intolerância