Baseado na peça teatral de Nelson Rodrigues, escrito e dirigido por Murilo Benício, estrelado por Lázaro Ramos, Fernanda Montenegro, Débora Falabella, Otávio Müller, Augusto Madeira e grande elenco, a nova versão de "O Beijo no Asfalto" consegue o feito de celebrar o teatro ao mesmo tempo que entrega um registro nunca antes vista no cinema brasileiro.

O anacrônico moderno
Há quem diga que nada melhor do que estrear no roteiro e na direção cercado de uma situação confortável, com um elenco que confia no que está sendo encenado e dos melhores profissionais que o mercado pode oferecer. É interessante que em sua estreia no cinema do outro lado da câmera, Murilo Benicio tenha alcançado o todas essas graças acima mas nada disso mascara quaisquer faltas de talentos de sua parte. Muito pelo contrário, aliás.

Num formato diferenciado, misturando documentário, teatro e o melhor que o cinema tem a oferecer, essa nova versão de "O Beijo no Asfalto" prima pela expertise de mostrar como uma peça teatral de tal porte é construída, do zero, da coxia ao ensaio aberto, com diretor de elenco explicando motivações de personagens, inflexões verbais, posturas em cena e tudo o mais que acaba resultando no belo e trágico espetáculo que só o texto vibrante de Nelson Rodrigues pode evocar.

Na trama, Arandir (Lázaro Ramos), um homem que, sem pensar, atende ao pedido de um beijo na boca feito por outro homem prestes a morrer ao ser atropelado na Avenida Presidente Vargas (RJ). Tal gesto banal vira uma matéria sensacionalista de Amado (Otávio Müller), um repórter que cria uma "fake news" e passa a explorar o beijo entre dois homens para vender mais jornal. A versão criada pelo jornalista incita a polícia a investigar uma suposta ligação entre Arandir e o morto e cria dúvidas na cabeça de Selminha (Débora Falabella), mulher de Arandir e filha de Aprígio (Stênio Garcia), que, misteriosamente, insiste na ideia de que presenciou o beijo, quando, na verdade, estava de costas.

Sinceramente, não importa nem um pouco à audiência saber quais as motivações por trás do insólito ato de Arandir - vigorosamente defendido por Lázaro Ramos - assim como não importa ter certeza se Capitu traiu (ou não) Bentinho ao final de "Dom Casmurro". A real importância é dada à paranóia que toma conta dessas personagens - que nada mais são do que um microcosmo desse país auriverde, infestado a cada dia por um discurso que propaga novas proibições na vida das pessoas.

Os destaques são muitos aqui. A começar pela estilosa e o totalmente adequada direção de fotografia de Walter Carvalho - aliada à precisa montagem e edição de Pablo Ribeiro - escolhendo filmar tudo no glorioso branco e preto, com sábias escolhas da iluminação teatral para evidenciar nuances escondidas dessas pérfidas personagens, permitindo uma leitura ainda mais profunda da psique humana - algo deveras presente na dramaturgia rodriguiana.

Benício, enquanto roteirista, teve a sagacidade de não mexer muito no roteiro original da peça - ainda que "filmar o ensaio" crie um formato que diferencia o filme das demais versões. Como diretor, Benício parece deixar os atores à vontade para criarem suas versões das personas mas sem se afastar muito da proposta original, respeitando ao máximo a lavra do grande Nelson Rodrigues.

As indicações dramatúrgicas advindas de Amir Haddad - que aqui aparece como um diretor de elenco - e Fernanda Montenegro - que se divide entre uma personagem e uma espécie de conexão entre a versão original da peça e o novo filme - fornecem diversas e valiosas informações dos bastidores da criação da peça, como o fato de que o personagem Amado - magistralmente vivido por Otávio Müller - realmente existiu e comparecia aos ensaios da peça nos anos 1960 para conferir como era encenado e que, ele próprio, "era muito pior" que sua versão escrita...

O elenco parece dividir-se naturalmente entre estilos diferenciados de atuação. Enquanto Otávio Müller, Fernanda Montenegro e Augusto Madeira (a dobradinha Müller-Madeira é um dos mais memoráveis embates cênicos que já se viu num filme brasileiro) embarcam numa abordagem e construção perfeitamente verossímil dos canalhas que se consideram homens de bem numa cruzada pela moral e bons costumes - a todo custo aliás -, Stênio Garcia, Lázaro Ramos e Débora Falabella já desenvolvem um viés mais de teatro clássico, num bem vindo exagero cênico, onde questiona-se a perseguição, indo mudando aos poucos de opinião, passando do lamento à repulsa gradativamente. Já Luiza Tiso reproduz o que o texto pede, sem grande destaque e com uma alofonia irritante como se tivesse mais inocência do que a personagem necessita, quase infantil, destoando do restante do elenco.


A direção de arte - concebida por Tiago Marques Teixeira -, a maquiagem - de Gabriela Figueira - e o figurino - criada por Valeria Stefani - também se destacam por reproduzir bem os cenários e o que era trajado nos anos de chumbo e, ainda assim, fotografar bem em branco em preto - o belíssimo visual do filme parece emular, a cada quadro, uma ilustração de Eduardo Risso... Talvez, essa opção pelo chiaroschuro se deva às "trevas" dessa época tão conturbada politicamente, uma vez que a tentativa de defesa e o implacável ataque visto em cena nada mais é do que a mais pura política de valores.

O único destaque negativo é a trilha sonora incidental comandada por Berna Ceppas: pouco inspirada, meramente convencional e até funcional, é verdade, mas sem ousadia e nada marcante.

Bem, o diretor e roteirista Murilo Benício fez o dever de casa: utilizou o melhor texto, cercou-se de um elenco estupendo e realizou uma obra memorável. Em sua estreia, desponta como um dos mais promissores diretores do cinema feito no Brasil. Bom gosto é tudo...





Kal J. Moon terminou de assistir o filme e disse: "Estou besta! Meu queixo caiu no chão!". Ele havia esquecido de fixar bem a dentadura...