Diretor de A Grande Aposta traz retrato fiel e, por isso mesmo, fragmentado de nossa atual sociedade em seu novo filme
A pandemia do novo coronavírus é real. Pessoas morreram. Pessoas adoeceram. E a grande responsável por toda a desgraça que vivemos desde março de 2020 é da desinformação.
Adam McKay, que no passado documentou uma das maiores crises deste século no excelente A Grande Aposta, de 2016, nos apresenta agora, em seu novo trabalho, um espelho quebrado em duas partes no qual é impossível não nos reconhecermos ao olhar para ele. Assistir Não Olhe Para Cima é vislumbrar neste espelho um mundo doente, como diria Renato Russo na perfeita canção Índios.
Nunca antes o bordão "seria cômico se não fosse trágico" fez tanto sentido. Não Olhe Para Cima é engraçado e sarcástico em certa medida. Mas também é apavorante e assustador. Dizer que se trata de uma alegoria do atual cenário político ocidental não seria um exagero. Todas as peças do tabuleiro do jogo de guerra entre a política e a ciência que vivemos no mundo real, da pandemia do COVID-19, estão lá, no mundo ficcional do cometa Dibiasky.
O roteiro foi escrito pelo próprio diretor, McKay, baseada no história de David Sirota. Sirota é jornalista e tem uma coluna no jornal The Guardian. Ter um comentarista político assinando a história fez de Não Olhe Para Cima um filme bastante fiel aos acontecimentos políticos dos últimos anos, especialmente no que tange a condução desastrosa da pandemia pelo governo republicano dos EUA. Lógico que isso traz muitos reflexos do que aconteceu por aqui mesmo, no Brasil.
O filme traz ainda uma belíssima reflexão sobre o que é o conservadorismo e o progressismo, assim como sobre o comportamento daqueles que se denominam conservadores e progressistas. De modo bem caricato (até porque essa gente é caricata) direitistas e esquerdistas são devidamente caçoados, uns mais, outros menos, através de piadas e situações clichês impagáveis. Tudo ornamentado pela edição louca dirigida por McKay, que exagera no uso de stock footage ao mesclar o universo cinemático apresentado ao mundo real.
Ela já fez isso em outras produções, é uma de suas assinaturas, e sempre funciona.
O elenco é arrebatador. Desde monstros sagrados do cinema, como Meryl Streep, passando por estrelas pop como Ariana Grande e novos colírios da galera como Timothée Chalamet, a trupe apresenta um trabalho soberbo. Mas, as grandes estrelas são mesmo Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence, que estão afiadíssimos e demonstram muita química em tela. Destaque também para Rob Morgan, Jonah Hill (que está incrível) e Himesh Patel.
A fotografia do filme nos mostra cenas em close que passam uma sensação de emergência, especialmente em momentos mais tensos e dramáticos da trama. O trabalho é de Linus Sandgren de Trapaça e Joy: O Nome do Sucesso.
Nicholas Britell compôs a trilha sonora e já tinha trabalhado com McKay em A Grande Aposta e Vice. As canções são bem arranjadas e encaixam bem com a proposta do longa metragem. Não Olhe Para Cima traz ainda uma canção interpretada por Ariana Grande e Kid Cudi, Just Look Up. Na letra, a cantora não poderia estar mais certa: "Listen to the Goddamn Qualified Scientists" (Ouçam a "porra" dos Cientistas Mais Qualificados).
Temos muitas cenas com efeitos visuais em razão do flerte com a ficção científica que há na trama. Tudo muito bem feito.
Lembrando que o filme tem duas cenas pós-créditos. Fique ligado para não perder.
Como um alerta para os perigos da desinformação científica, Não Olhe Para Cima é um filme necessário e merece ser assistido. Antes que seja tarde demais.
Marlo George assistiu, escreveu e gostaria que relembrar a memória de Mariana Mirabetti, dubladora que nos deixou recentemente, vítima da COVID-19. Descanse em paz.