Uma criação conjunta de Sam Levinson, Reza Fahim e Abel "The Weeknd" Tesfaye, estrelada por Lily-Rose Depp, o próprio The Weeknd em pessoa e grande elenco, a minissérie "The Idol" traz um breve vislumbre da carreira das divas da música POP atual, mas aquele lado mais obscuro, solitário, depressivo e sem glamour. Fica a pergunta: vale a pena assistir cerca de cinco horas disso? Que bom que perguntou...


Religião urbana
Certa vez, a cantora brasileira Fafá de Belém disse em entrevista que não estava conseguindo acertar o tom dramático de uma de suas canções durante a gravação de um disco. A canção falava de separação de um casal e ela, bem resolvida em seu relacionamento amoroso à época, não "sentia" aquela carga dramática que necessitava expressar através de suas cordas vocais. Após diversas tentativas frustradas, a solução foi... terminar o relacionamento com o namorado. Imbuída de todo aquele "pesar", regravou a canção lindamente com toda a tristeza necessária àquela interpretação. Em seguida, voltou ao namorado, explicou a situação, pediu desculpas e... ele não quis reatar o namoro.

(Guarde essa informação acima pois voltaremos à ela mais à frente)

"The Idol" já inicia sua controversa carreira a partir dos conturbados bastidores quando a co-criadora original e diretora escalada Amy Seimetz tem sua saída anunciada no ano de 2022 em meio a boatos de desacordo entre Sam Levinson e The Weeknd sobre a abordagem supostamente "feminista demais" da trama. Além da saída dela, Joe Epstein teria originalmente o cargo de showrunner (o encarregado principal dos roteiros e da "visão" do programa), mas, quando o programa vai ao ar, aparece apenas como produtor executivo.

Como se isso não bastasse, a partir da saída desses profissionais, nada menos que SETE meses de filmagens foram para o lixo, diversos membros do elenco foram cortados - a atriz Anne Heche (1969-2022) interpretaria uma personagem recorrente (supõe-se que seria a mãe de Jocelyn - e este seria seu último papel, se não tivesse falecido em agosto de 2022, durante a reestruturação do show); provavelmente haveria flashbacks pois uma atriz mirim estava contratada para viver uma versão mais jovem da protagonista -, novos membros chegaram - a personagem interpretada por Da'Vine Joy Randolph não estava nos roteiros originais, por exemplo -, capítulos inteiros foram reescritos, mudando o curso original da trama (que teria seis episódios, ao contrário dos cinco apresentados). E, claro, toda essa mudança estrutural pode ter afetado (negativamente) a qualidade do que é mostrado na telinha...


Na trama, a jovem cantora Jocelyn (ou "Joss", para os íntimos) está passando por uma crise criativa. Apesar de ter rejeitado todas as composições de seu novo álbum, acaba de lançar um single e anunciou uma turnê, onde precisa lançar clipe, ensaiar coregrafias e ter novas canções para compor repertório. Em meio a um problema de gestão de reputação - onde uma foto comprometedora da cantora circula pela internet -, Joss conhece o misterioso Tedros, dono de uma boate fuleira que almeja a carreira de produtor musical. Por conta de seu magnetismo e altas doses de manipulação, Joss cai de encantos por Tedros, que se muda para a mansão de Joss e promete aos empresários dela a produção de pelo menos três canções de sucesso. Só que Tedros usa de métodos nada tradicionais para alcançar seus objetivos e as coisas podem sair do controle a qualquer momento...

Para entender a proposta (e, eventualmente, vir a gostar) de "The Idol" é necessário ter um mínimo de background cultural acerca da história de vida e carreira de divas POPs de diversas épocas, uma vez que as personagens meio que se misturam a um monte de fatos (e boatos), transformando-se numa espécie de "colcha de retalhos" (ou um verdadeiro "quem é quem") que pode dificultar até mesmo a compreensão de quem não tiver conhecimento prévio, como numa gigante (e caríssima) piada interna, onde só achará graça quem souber o contexto...

Tendo isso em mente, embora inicialmente Jocelyn seja escrita como uma versão de Britney Spears e Christina Aguillera (passado em programas infantis de TV, roupas, comportamento, coreografia e escândalos de transtornos mentais), aos poucos a audiência mais atenta pode perceber traços de acontecimentos da vida e carreira de Beyoncé, Lana Del Rey e, principalmente, Rihanna - para quem não sabe, Rihanna teve um relacionamento amoroso bem abusivo e conturbado no passado com o rapper e produtor musical Chris Brown (onde ele também agia como "mentor musical" em alguns momentos da carreira dela).


Dito isso, Tedros seria uma uma mistura de comportamentos entre o já citado Chris Brown com Ike Turner - ex-marido da já saudosa Tina Turner (1939-2023) que também atacava de produtor musical (além de também ser bastante abusivo com Tina, a ponto de cometer absurdos com o corpo da esposa apenas para justificar o que era melhor para a produção de uma canção - pesquisem). A tal reviravolta polêmica do quinto episódio tem a ver com o que aconteceu tanto com Tina quanto com Rihanna - falando nisso, outro ponto de identificação com a cantora nascida em Barbados é que a protagonista de "The Idol" é chamada na intimidade de "Joss" e Rihanna carinhosamente atende pelo apelido de "Riri" (notem que ambos os apelidos tem consoantes repetidas - e que "r" vem depois de "s" no dicionário).

Detalhes e curiosidades à parte, o roteiro de Levinson, apesar de interessante enquanto "jornada", peca em diversos momentos. Mesmo que haja uma pesquisa em relação a alguns detalhes do showbizz musical - destaque para o problema dos pés machucados da protagonista por ter de repetir exaustivamente movimentos de dança durante a gravação de um clipe (e o custo de mais de 400 mil dólares para adiar as gravações daquele dia por conta da impossibilidade física de continuar com os esforços, além da perda do material filmado por conta de mal funcionamento de um dos equipamentos de filmagem) -, outros detalhes chamam bastante a atenção como o empresário (interpretado por Hank Azaria, num raro papel sério) tratar o "gerenciador de intimidade" - aquela pessoa responsável pelo quanto do corpo da cantora pode ser exposto numa filmagem ou numa sessão de fotos sem causar um imbróglio jurídico (sim, esse cargo existe na vida real) - como se fosse um "profissional menor" e trancá-lo no banheiro para que a protagonista possa exibir seus seios nas fotos (que servirão de material para compor a capa de seu próximo disco) "em paz".

Ou, ainda, que a mansão da protagonista (uma cantora POP - e que, na verdade, é a mansão real de The Weeknd, localizada em Bel-Air / Los Angeles) tenha apenas porteiros durante o dia mas nenhum segurança durante a noite (esse problema é corrigido após Tedros se mudar para o local), ou mesmo como Tedros se apodera de tudo e de todos com a anuência inclusive dos empresários da estrela, sem qualquer questionamento (exceto pela oposição de Leia, assistente pessoal e melhor amiga de Joss, interpretada por Rachel Sennott) - ainda que o personagem seja um completo desconhecido no ramo de produção musical -, dentre outros pormenores, que não chegam a estragar a experiência à primeira vista mas vêm à tona numa análise mais profunda.


Independente das confusões que possam ou não terem ocorrido nos bastidores, a obra precisa ser analisada pelo que ela é, não pelo que poderia ser. "The Idol", aos trancos e barrancos, com um exacerbado (e dispensável) conteúdo erótico, ainda consegue entreter de forma razoavelmente satisfatória numa espécie de tour de force pós-moderna a respeito do que acontece na cabeça de mentes criativas do mundo da música. Quer dizer, isto é verdade até a reviravolta do quarto episódio.

A partir do quinto (e divisivo) quinto episódio, o longo desfecho apresentado à essa trama pode afugentar mesmo a audiência que estivesse curtindo essa extravagante jornada pois diversas informações apresentadas no quarto episódio se desmontam, revelando um revés um tanto inesperado (e mal construído, diga-se de passagem), onde tudo o que havia sido estabelecido muda de figura, com uma profusão de informações que nem dá para confiar pois não se sabe se os personagens estão mentindo ou não... A coisa é tão confusa e mal estruturada que teve muita gente que não entendeu O QUE realmente ocorreu no último episódio (a explicação está lá mas é dúbia) - e quando a audiência fica confusa a respeito da trama, não é porque o roteiro é inteligente demais e feito para audiências refinadas mas sim porque faltou aquela tal "sintonia fina" para aparar arestas e estabelecer o que é o que no final das contas. 

Quanto à direção geral - também de Levinson -, bem, o principal acerto foi, claro, escalar Lily-Rose Depp como coprotagonista. A jovem atriz - que fez sua estreia em dois (questionáveis) filmes independentes de baixo orçamento ("Tusk" e "Yoga Hosers", ambos escritos e dirigidos pelo cultuado nerd Kevin Smith), quando ainda assinava como "Lily-Rose Melody Depp" - está totalmente entregue ao papel, não se importando com a exposição de seu corpo nas cenas (de gosto duvidoso) de performance sexual que beiram o que se fazia em filmes adultos transmitidos nas madrugadas de sexta-feira da Band nos anos 1990. Mas, apesar disso, a atriz imprime personalidade e total domínio de seu mister, fazendo de sua Jocelyn algo próximo do real e o perfeito trampolim para uma promissora carreira dramatúrgica.


Por outro lado, Levinson não conseguiu fazer com que The Weeknd pudesse minimamente ser considerado "ator". Ok, em dois momentos específicos da minissérie - reparem na cena do jantar e no último episódio - onde há reais esforços dramáticos do cantor e compositor. Mas, no geral, parece um grave problema de escalação. Para se ter uma ideia, se colocassem o estreante Moses Sumney - que interpreta o aspirante a cantor e capanga Izaak (aliás, destaque também para os talentos vocais de Summey) - para ser coprotagonista e The Weeknd ficasse em seu lugar (ou nem aparecesse), faria muito mais sentido na trama, uma vez que o jovem ator entrega muito mais num personagem que nem tem lá tanta importância do que o cocriador da série...

Outro destaque vai para a já citada atriz (e cantora) Da'Vine Joy Randolph. Sua interpretação da personagem Destiny oferece um mínimo de coerência ao caos que ocorre nessa história e também traz a responsabilidade de quem gerencia artistas de música há mais tempo do que se imagina. A cena onde explica à jovem Chloe (uma espécie de "versão mais jovem" - e paródica - de Billie Ellish, interpretada pela também cantora Suzanna Son) os cuidados que deve tomar para não "se vender" à indústria e não corromper sua integridade musical é um dos momentos mais interessantes desta trama rocambolesca (mas repare nas reações da atriz quando Destiny conversa com Joss, que lhe conta um monte de absurdos que Tedros cometeu no passado - como se não fosse nada demais - e, mesmo visivelmente abismada, Joss insiste em prosseguir com a ficha corrida do escroque, quando Destiny diz "e então?!" de um jeito bem específico porém completamente real).


O restante do elenco está okay e operante por conta de não ter muito o que fazer com o roteiro oferecido. Hank Azaria, Eli Roth e Hari Nef fazem o que podem e procuram não comprometer o resultado - Dan Levy também está lá mas mal registra de tão insignificante seu personagem. Do elenco de apoio, somente Jane Adams, Troye Sivan e Rachel Sennott tem cenas mais significativas do ponto de vista narrativo. Desse último trio, quem se destaca um pouquinho é Sivan, na já polêmica cena de tortura - além disso, sua personagem também é responsável por parte da divisiva reviravolta no quinto e último episódio.

Em relação aos destaques técnicos, a direção de fotografia comandada por Marcell Rév, Arseni Khachaturan e Drew Daniels é inconstante, adotando diversos estilos (de cromáticos e cheia de ângulos ousados em alguns momentos à totalmente clássica em outros), deixando a narrativa "estranha" em diversas cenas, onde a audiência é constantemente lembrada que aquilo está sendo filmado - impedindo boa parte da imersão.


Já o figurino criado por Natasha Newman-Thomas (que trabalhou em clipes de artistas como U2, Florence + The Machine, Sam Smith, Childish Gambino e, claro, The Weeknd) é adequado e traz um certo realismo àquela atmosfera, tanto em modelos mais luxuosos como também em roupas mais curriqueiras de diversos personagens.

A direção musical - dividida entre o célebre produtor Mike Dean (que também atua na minissérie), Levinson e The Weeknd - oscila no quesito "qualidade". Tudo o que é produzido como canção do tal novo disco da protagonista é coerente com a identidade musical da personagem - começa como algo que soa como Britney Spears e termina como uma mistura entre o som de Rihanna, Beyoncé e Lana Del Rey - mas os destaques vão mesmo para as peças interpretadas por Suzanna Son (em destaque, a belíssima "Family") e Moses Sumney (como na igualmente bela "Get It B4", que parece uma ótima fusão do som de Prince com Marvin Gaye, porém numa abordagem bem contemporânea).


E, como dito no começo desse texto, a polêmica a respeito da trama do último episódio - que, sim, poderia ter sido melhor elaborada -, dá-se justamente por conta de que, na minissérie (assim como o que ocorreu com Fafá de Belém), Jocelyn "precisaria" passar por tudo aquilo para ter o background "ideal" para sair da mesmice criativa como compositora - o famoso "fingir sentir o que realmente sente", sabe?  Porém, fazer com que esse detalhe viesse através de uma reviravolta bem questionável - também chamado de "revenge porn", onde uma personagem feminina consegue vencer um oponente masculino apenas por sua motivação de vingança por algo que ocorreu no passado - não é, de longe, a melhor solução para esta trama. Porém, divas da música POP são o mais próximo que veremos da veneração religiosa dos santos de outrora - e isso é bem explorado na minissérie.

Independente de todos os problemas apresentados, "The Idol" ainda cumpre com a função de entretenimento - apesar do fraco primeiro episódio - e, mesmo que tenha de se relevar muito do que ocorre na trama, pode impactar a audiência (porém, é impossível ficar impassível ao que é apresentado).

"The Idol" pode não ser perfeito (e está longe disso), deveria ter uma duração menor de episódios - tem muita coisa desnecessária acontecendo - e teve uma péssima escolha de elenco para coprotagonista, além de deixar algumas questões em aberto (ainda que não haja qualquer previsão oficial de uma segunda temporada). Mas é como assistir um acidente em curso: não tem como parar de olhar, nem que seja para, pelo menos, saber como a história termina... Experimente e tire suas próprias conclusões.




Kal J. Moon canta, dança, interpreta e sapateia. Faz tudo isso pessimamente. Que demais!

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