Indicado a 13 Oscars (incluindo Melhor Filme), escrito e dirigido por Jacques Audiard, estrelado por Zoe Saldaña, Karla Sofía Gascón, Selena Gomez e Adriana Paz, o filme "Emilia Pérez" oscila entre narrativas e improváveis canções mas estabelece a importante questão: que tiro foi esse?!


A audácia da pilombeta
Façamos um breve exercício de imaginação em que, por acaso, algum cineasta húngaro queira produzir, escrever e dirigir um filme sobre um integrante da facção criminosa brasileira Comando Vermelho que finge a própria morte e retorna com outra identidade para ajudar vítimas da guerra entre facções. Esse cineasta não fala português brasileiro, quer que o elenco seja de origem asiática mas falando em português macarrônico - e, claro, para abater impostos, será filmado no Canadá. Sem esquecer que o filme será um musical.

Ainda seguindo esse raciocínio, o filme é lançado e concorre a prêmios em diversos festivais de cinema, com críticas aclamando como "arrojado", "inovador" e "surpreendente". E esse filme, com essa base bizarra de construção, concorre a muitos Oscars - mas não representando o país retratado na trama mas sim a Hungria, local de origem do cineasta.

Parece estranho ou improvável? Mas é o que exatamente acontece desde o lançamento do polêmico "Emilia Pérez", que se passa no México mas foi filmado na França - por um diretor francês que se comunicava em inglês com elenco -, que é estrelado por uma dominicana, uma norte-americana, uma mexicana e uma espanhola, além de parte do elenco principal não falar espanhol corretamente (com o agravante desse "detalhe" ter sido parcialmente corrigido com auxílio de inteligência artificial). OK, independente desses "probleminhas", o filme é bom? Bem... 


Na trama - livremente baseada em um capítulo do livro "Écoute", de Boris Razon -, uma advogada é coagida a auxiliar um poderoso traficante mexicano de entorpecentes a realizar o mais importante feito de sua vida: fazer uma cirurgia de mudança de gênero e se tornar uma mulher, abandonando a vida de crimes definitivamente. Anos depois, essa nova mulher procura a advogada para trazer a ex-mulher e seus filhos para o México, além de criar uma ONG a fim de iniciar buscas aos cadáveres de pessoas desaparecidas por conta da guerra do tráfico. Porém, o passado sempre bate à porta.

Pode parecer estranho mas essa trama foi extraída de apenas um capítulo do livro de Razon - que fala de outros temas que nada tem a ver com o enredo do filme -, o que só prova que o roteirista Jacques Audiard realizou o verdadeiro "samba do francês doido" em matéria de adaptação. Segundo suas entrevistas e declarações, "(...) Existem, na verdade, duas questões sensíveis neste filme: a identidade transgênero e os desaparecidos no México. É algo que não consigo explicar bem racionalmente, mas havia uma ligação entre os dois temas quando imaginei esta história".

O roteiro de "Emilia Pérez" é um pesadelo multi-temático pois atira para tudo quanto é lado, seguindo caminhos tortuosos (e quase esquizofrênicos) para alcançar seus objetivos. Tem o drama da transição de gênero, tem o drama da esposa que pensa que seu marido traficante morreu, tem o drama dos desaparecidos por conta do tráfico (de longe, a parte mais interessante do filme), tem o drama da redescoberta do amor - tanto por parte da nova pessoa que Emilia Pérez se tornou quanto pela sua ex-esposa -, tem o drama de Pérez não querer que seus filhos deixem sua nova casa para ir morar com o noivo / futuro marido de sua ex, tem o drama... OK, vocês entenderam.

E tudo isso embalado com canções vindas dos momentos mais improváveis - atrapalhando consideravelmente a narrativa -, como durante uma personagem que acabou de trocar um absorvente íntimo e se questiona sobre o futuro, realizando movimentos de coreografia que não condizem com o que estava fazendo há menos de um minuto ou mesmo numa simples conversa com um médico, em que perguntas e respostas se tornam motivo para cantar e exaltar as dificuldades de pessoas LGBT (mesmo que a personagem nem era tão próxima assim de seu cliente para ter algum nível de sororidade em relação à sua peculiar condição).


Com todos esses temas que não saíram da obra original, o roteiro de Audiard é o tipo de texto "para inglês ver": raso, superficial em diversos aspectos, que não fez a devida pesquisa em relação a seus retratados, mas que dá uma ideia "já estabelecida" - e "uma visão muito mais estilizada", nas palavras do próprio diretor - de como é a vida no México ou como se porta um líder belicoso de cartel e, também, que não sabe que "prisão" em espanhol não é "cárcel" mas sim "penitenciaria".

Sobre as questões dos números musicais, "(...) o uso da ópera, do canto e da dança permite um certo distanciamento e torna a mensagem muito mais eficaz" pois "(...) penetra muito mais profundamente do que se fosse documentada de forma muito realista", ainda segundo o diretor / roteirista, que se defende das críticas dizendo que "(...) O cinema não fornece respostas, ele só faz perguntas. Mas, talvez, as perguntas de 'Emilia Pérez' estejam incorretas". Pois é...

Independente de todos esses deméritos, o filme tem algo que se salve: o terço que trata dos desaparecidos por conta da guerra institucionalizada pelo tráfico, chegando ao impressionante número de quase 500 mil mortos nesta insana disputa de território - a grande maioria de inocentes no meio do fogo cruzado. Porém, todo o restante oscila no quesito 'qualidade', por trazer temas menos interessantes - ou mal trabalhados pelo roteiro.

Apesar disso, de forma meio atabalhoada, o diretor Jacques Audiard conduz bem seu elenco, realizando números musicais bem coreografados - em sua maioria -, além de saber o que deseja ver em cena. O problema é que ele quer ver muita coisa em cena, de dança à tiroteio e explosão...


Quanto ao elenco, o destaque é mesmo para Karla Sofía Gascón - atriz trans que, até 2018, assinava como Juan Carlos Gascón (e participou de filmes de razoável sucesso como "Los Nobles - Quando os Ricos Quebram a Cara", de 2013) -, que transita bem entre o masculino traficante Manitas e a hiper feminina Emilia Pérez (apesar do polêmico uso de inteligência artificial para deixar sua voz mais grave como Manitas, uma vez que a atriz não conseguiu alcançar o timbre necessário para realizar tal façanha). Mas em matéria de performance e entrega, ela se sai bem - mesmo que tenha menos tempo de tela do que deveria...

Quanto à atuação de Zoe Saldaña, bem, a atriz é apenas uma advogada advogando. Sua personagem não tem profundidade maior que apenas defender seu / sua cliente, além de fazer isso dançando, cantando e misturando sotaque norte-americano, colombiano, porto-riquenho e dominicano - mesmo que sua personagem seja de origem mexicana. Não é exigido muito dela em relação à dramaticidade - e há de se questionar se as indicações foram por mérito de pouca dramaticidade expressada em cena ou por sua dinâmica entre cantar e dançar...

Selena Gomez tem pouco tempo de tela (pouco mais de 20% do que o restante do elenco) e teve muita dificuldade em falar em espanhol, misturando uma versão incompreensível do idioma de Cantinflas com um pouco de inglês em sua primeira cena e melhorando gradativamente nas cenas posteriores - também com auxílio de inteligência artificial (a própria atriz, após críticas, disse que fez "o melhor que pude com o tempo que me foi dado" e que não estava feliz com o resultado de sua não fluência em tela). Porém, em relação à performance, está okay, sem grandes arroubos mas não compromete - nem mesmo nos momentos musicais (o primeiro é bem controverso), dentro do que foi proposto para sua personagem. 

Adriana Paz tem participação menor no terço final da trama e entrega talvez uma das três melhores performances musicais - justamente a que encerra o filme (e cuja canção, misteriosamente, não foi indicada ao Oscar). Mas, além disso, serve apenas como interesse amoroso de uma das personagens.


A direção de fotografia de Paul Guilhaume (do clipe "Heaven and Hell", de Kanye West) é elaborada, oscilando entre momentos "câmera na mão" até o puramente artístico nas partes musicais, aliadas às precisas transições da edição comandada por Juliette Welfling (de "Oito Mulheres e um Segredo"). 

E num filme com diversos números musicais, não tem como não falar da qualidade das canções executadas. A grande maioria poderia facilmente passar por diálogos de preenchimento mas como o diretor queria fazer "uma ópera" (palavras dele), muito do que se ouve em tela são ou lamentos de alguns personagens em formato musicado ou são canções que poderiam até funcionar melhor como simples falas.

Mas três se destacam: "Mi Camino" (interpretada por Selena Gomez - e uma das duas que concorrem ao Oscar de Melhor Canção Original), "Aquí Estoy" (interpretada por diversos atores e atrizes, num belo coro ao final) e "Las Damas Que Pásan" (interpretada por Adriana Paz, ao final do filme) - todas composições da Clement Ducol & Camille Dalmais.


"Emília Pérez" é um dramalhão mexicano digno de telenovela, que acerta em trazer temas importantíssimos ao debate mas erra feio em não se aprofundar em nenhum deles, desperdiçando tempo da audiência com momentos musicais em vez de algo mais elaborado em termos de roteiro.

Em tempos de conservadorismo extremo, tornou-se o exemplar mais canhestro para tratar de assuntos espinhosos mas que, ironicamente, atingiu grande parte do público mais por conta da polêmica do que por méritos próprios. Porém, apesar disso, ainda vale o entretenimento, justamente por ser bem diferente do que se consome atualmente em matéria de cinema. É interessante mas, infelizmente, não é "isso tudo"...



Kal J. Moon acha um crime que exista uma canção em "Emilia Pérez" que critique o tamanho da bunda de Zoe Saldaña...

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