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CRÍTICA [STREAMING] | "Pecadores", por Kal J. Moon

Escrito e dirigido por Ryan Coogler, estrelado por nomes como Michael B. Jordan, Miles Caton, Hailee Steinfeld, Jack O'Connell, Wunmi Mosaku, Delroy Lindo, Jayme Lawson e Omar Benson Miller - dentre muitos outros -, o filme "Pecadores" é o perfeito exemplo de que o Cinema ainda pode entregar entretenimento POP que traga importantes mensagens sociais (mesmo que desagrade parte da audiência)...


O diabo está no... subtexto
Tentar descrever a experiência e o que a audiência pode esperar de um filme tão diferente quanto "Pecadores" pode ser um desafio e tanto se a missão cair nas mãos de alguém despreparado. e, provavelmente, quando esta produção abarcou no cinema, não deve ter tido o tratamento que merecia da atual turma de críticos. Não necessariamente por culpa deste séquito de esnobes metidos a literatas mas porque a obra em específico carece que a pessoa a analisá-la saiba do (s) contexto (s) abordado - social, político, geracional, musical, religioso - para "alcançar" boa parte do que é dito e expressado na telona.

Se isso não acontecer, a pífia análise resvalará no combo "uma direção de fotografia excelente", "trilha sonora magistralmente composta por...", "atuações que beiram a teatralidade", "roteiro primoroso", "direção eficiente de..." ou "certamente, será indicado em diversas categorias nas premiações"  - ou seja, superficial e feito sem o menor esforço intelectual.

Na trama de "Pecadores", dispostos a deixar suas vidas de crime para trás, irmãos gêmeos retornam à sua cidade natal para recomeçar suas vidas, quando descobrem que um mal ainda maior está à espera deles para recebê-los...

A história se passa em apenas um dia numa cidadezinha do Mississipi em 1934 - sim, apenas cinco anos depois da chamada "Grande Depressão", numa época em que as esquetes cômicas - e racistas - do personagem Jim Crow são sucesso no país (o moral do povo negro estava bem baixo naqueles anos de chumbo). Apesar das pessoas conseguirem sobreviver do fruto de seus trabalhos, a tal prosperidade só existia para alguns afortunados.


Mesmo depois da libertação do regime escravagista, as profissões que rendiam alguns trocados para pessoas com pouca - ou nenhuma - posse era a colheita de algodão (o tipo de trabalho que machuca as mãos, força a coluna por conta da posição própria para executar a coleta e causa varizes nas pernas pela quantidade de tempo que se passa em pé). Era isso ou roubar... Nesse cenário - muito propício para a proliferação de diversos cantores e compositores de blues -, a ideia de ter um bar / casa de shows exclusivo para essas pessoas é como um oásis no deserto.

Muito da trama deste filme passa pelo subtexto. Algumas ações são justificadas mais em gestos do que em palavras. Tem vários exemplos ao longo da rodagem mas alguns se destacam como o momento em que os gêmeos Fuligem e Fumaça (ambos interpretado por Michael B. Jordan) negociam a compra da antiga serraria - que, muito em breve, seria a tal casa de shows - com um homem da região (interpretado por Dave Maldonado). Primeiro, ele não acredita que os irmãos tenham cacife para bancar a oferta. A primeira coisa que ele faz ao vê-los é cuspir no chão - como quem vê algo que dá asco em seu íntimo (o que denota, de forma indireta, que o homem é racista - e nem precisa dizer a cor da pele dele para denotar isso).

Outro exemplo é quando Remmick (interpretado por Jack O'Connell) literalmente cai em frente a uma casa e está sendo perseguidos por índios da linhagem Choctaw - que, supostamente, quebraram sua "promessa". Os habitantes da casa dizem que essa tribo não é vista na região há anos - investigando na História, foram expulsos do Mississipi (que era terra de habitação deles há séculos) para outros locais e tinham uma espécie de acordo com irlandeses de colaboração por conta da cooperação e defesa de ambos os lados em momentos conturbados.

Em outro momento, Remmick reconhece a oração do Pai Nosso e diz que aqueles que expulsaram "seu povo" de sua terra proferiam aquelas palavras o tempo todo - o que remete à invasão da cristandade, que conquistou e forçou sua religião à Irlanda como método de controle populacional. Além disso, em outra cena, o personagem aparece tocando um banjo de cinco cordas - que, por si só, é a versão "americanizada" de um instrumento africano trazido para os Estados Unidos pelos escravizados (que já traz a ideia sutil da apropriação cultural que Remmick propõe). Isso sem contar que o personagem é interrompido de cantar por Fuligem não por não gostar da música mas sim por conta do verso não cantado conter uma enorme ofensa racial contra afrodescendentes...


Deliberar sobre cada micro detalhe escondido no roteiro ou no cenário (coisa que só é possível revendo a obra algumas vezes no streaming e pesquisando na internet) - como o nome do bar / casa de shows ser "Club Juke" (a origem da palavra "juke" ou "jook" é incerta mas há quem diga que vem de um termo africano que pode significar "maligno" ou "enfeitiçado" e também dizem que deriva de "juice box", que era como músicos chamavam as primeiras guitarras elétricas - mas, estranhamente, deu origem a "jukebox", que é uma "caixa que toca música") - seria como aquele meme do carinha engravatado apontando para um mural cheio de fotos, indicando cada ponto de sua teoria da conspiração.

O que o roteiro escrito por Ryan Coogler (de "Fruitvale Station - A Última Parada", o primeiro "Creed" e "Pantera Negra") faz é uma mistura muito benvinda de cinema POP e artístico, reflexivo, contundente e emocionante. Existem momentos nesse filme que são belos, outros bem catárticos (como A grande cena do filme, que mostra como a música "abre um portal" no tempo-espaço - sério, só essa cena dá uma tese de doutorado, de tanto detalhe e significância que possui) e alguns que levam a audiência às lágrimas - especificamente um, que envolve a personagem interpretada por Wunmi Mosaku. Mesmo assim, não é uma obra proibitiva para novas gerações pois abraça diversos estilos musicais e até estéticos para contar sua história - que tem tanto detalhe que pode atrapalhar a absorção e compreensão da real mensagem proposta pela trama.

(mas, por mais acertos que o roteiro tenha, também há de se apontar seus desvios, como a quantidade de sub-plots de personagens que nem são lá muito importantes à história - como a filha dos comerciantes orientais, que aparece apenas em duas cenas e serve apenas como combustível dramático no terço final e que ninguém sabe o que acontece ao fim da trama - e também a mistura de temas - começa como um drama sócio-político, vira um terrorzão B e se torna algo sobre o legado que a música causa a um indivíduo -, traz muita coisa para se prestar atenção, como se fosse três filmes em um)

O que leva à direção do próprio Coogler, que sabe bem o que quer contar. O filme não é somente algo visualmente lindo em diversas tomadas, também tem tomadas e estabelecimentos de personagens que não são tão belos de se ver. Coogler sabe exatamente o que extrair de seu elenco - tanto que não tem ninguém fora de tom em suas composições de personagens. Mas também sabe gerenciar projetos de grandes escopos ou com numeroso elenco pois tudo funciona de forma orgânica - tem pelo menos três cenas que evidenciam essa organicidade mista.


Dentre o espantoso e afiado elenco, o primeiro grande destaque é o veterano (e subestimado) Delroy Lindo (que já chamava a atenção desde a década passada com participações em séries como 'A Bela e a Fera" ou em filmes como "Advogado do Diabo" - obrigado, Marlo George - mas, recentemente, esteve em séries como "This Is Us" e filmes como "Vingança & Castigo"). Delta Slim - personagem interpretado por Lindo - é, certamente, alguém que todo mundo já conheceu na vida: aquela pessoa talentosa que por alguma falha de caráter, estacionou suas ambições e só quer viver um dia de cada vez da forma mais confortável (e não, necessariamente, melhor). A composição de Lindo para seu personagem é de alguém que traz o ordinário e muito comum mas com uma simpatia que não dá para ignorá-lo. 

Outra que se destaca positivamente é Wunmi Mosaku (de séries e filmes Marvel como "Loki" e "Deadpool & Wolverine"). Annie, sua personagem, é complexa pois teve duas terríveis perdas no passado - que tem a ver com um dos protagonistas - mas sobreviveu graças à sua perseverança mas também às suas convicções religiosas. Ela representa a "mãe preta" - literal e metaforicamente falando -, uma vez que é aquela que a vizinhança conta para ter remédios de cura ou o contato com o sobrenatural, o obscuro ou o misterioso obstáculo entre a vida e o além. Muito da personagem é resolvido no olhar, algo triste mas também esperançoso. E ainda - contra todas as convenções hollywoodianas - faz parte de um par romântico que, em outros tempos, não seria interpretado por uma atriz com suas compleições físicas. A trajetória de sua personagem - assim como de alguns outros - mostra que existe um passado, um contexto, um histórico que não pode ser desprezado mas também olha para um futuro incerto, em dias ruins (e que enfrentará um dia muito, muito ruim).

O vilão interpretado por Jack O'Connell (dos recentes filmes "Back to Black" e "Extermínio - A Evolução") quase beira o limite da caricatura mas equilibra bem o sarcasmo e a fina ironia de alguém que quer conquistar um espaço onde não é bem-vindo. O fato do ator e personagem serem irlandeses eclode durante a apresentação da canção "The Rocky Road To Dublin" (creditada ao poeta irlandês DK Gavan no século 19), como uma preparação à iminente guerra. Sua caracterização e construção de personagem passeia pelo melífluo e político ao ameaçador e aterrador em questão de instantes.

O estreante Miles Caton - "Pecadores" é seu primeiro projeto audiovisual! - segura bem a marimba de transitar entre a coadjuvância e o protagonismo (o que não é nada fácil, tendo em vista os medalhões que compõem o talentoso elenco). Além disso, também tem de cantar e tocar em cena - muitas das canções, captadas ao vivo -, que também poderia abalar qualquer novato mas Caton desempenha bem seu papel.


E, claro, Michael B. Jordan (de "Pantera Negra" e da trilogia "Creed" - em que fez sua estreia como diretor no terceiro filme) convence como os irmãos gêmeos Elijah e Elias Moore (ou "Fuligem" e "Fumaça"). Enquanto um é matreiro e irônico, outro é metódico e calculista. Um está preocupado com a diversão que o "Club Juke" vai proporcionar aquela gente sofrida do Mississipi enquanto outro tem clara noção do investimento que fizeram e da projeção de lucros alcançada naquela terrível noite de estreia.

Mas os efeitos especiais de duplicação de atores é tão bem realizada que a audiência pode até esquecer que são irmãos gêmeos mas sim duas pessoas completamente diferentes - o que só demonstra que o trinômio "roteiro-direção-atuação" se esforçou o bastante para não entregar algo excepcional per se mas personagens sólidos e críveis.

Agora, embora o restante do elenco esteja bem, algumas decepções devem ser notadas como a presença de Hailee Steinfeld (indicada ao Oscar por "Bravura Indômita" e da recente série Marvel "Gavião Arqueiro") - que, dizem, seria interpretada pela cantora Halsey. Apesar de ter uma específica importância na trama - ser parte do passado de um dos protagonistas -, sua personagem é um misto de características justamente por ser mestiça e ter convivido com negros a vida toda. Porém, o roteiro lhe entregou pouco além de ser o elemento catalisador do vindouro caos da trama. 


A direção de fotografia capitaneada por Autumn Durald Arkapaw (de clips musicais estrelados por SZA, The Weeknd, Travis Scott e Rihanna - dentre muitos outros - a filmes e séries Marvel como "Loki" e "Pantera Negra - Wakanda Para Sempre") funciona bem em todos os momentos. Ambienta bem a situação local, transiciona perfeitamente entre cenas de esforço laboral e atmosfera festeira, além de capturar bem as tomadas de ação.

Já a trilha sonora composta por Ludwig Göransson (vencedor do Oscar por seu trabalho em "Pantera Negra" e o recente "Oppenheimer")... Ah, que deleite é estar vivo para apreciar o que este sueco preparou. Dá pra ouvir o carinho, cuidado e pesquisa com que cada nota é tocada - e o que o compositor intenciona que seu público sinta durante a execução. Enquanto o início da rodagem traz acordes mais longos e notas mais esticadas, ao chegar da noite têm-se ritmos mais sincopados e peso semelhante ao que viria a ser chamado (no contexto da época em que se passa a trama) de "heavy metal" - porém, com bastante equilíbrio entre o que é encenado e o que é ouvido musicalmente falando. Nada está fora de lugar e, certamente, é aquele tipo de trilha sonora que sobreviverá além do filme...


A direção de arte de Jesse Rosenthal (de "Três Anúncios para um Crime") - aliada à cenografia criada por Monique Champagne (do recente filme "O Reformatório Nickel"), ao design de produção de Hannah Beachler (vencedora do Oscar por "Pantera Negra") e ao figurino de Ruth E. Carter (ganhadora de dois Oscars por "Pantera Negra" e "Pantera Negra - Wakanda Para Sempre") - traz uma construção de um universo próprio, com roupas que não parecem tão novas quanto normalmente seriam em produções do gênero ou cenários que parecem tão reais que facilmente passariam por construções ancestrais.

"Pecadores" é aquele tipo de filme que está repleto de mensagens sociais, embalado em meio a um chamativo verniz POP. Provavelmente, não agradará todo mundo mas, se acontecer, basta reassistir e fazer aquela pesquisa básica para descobrir mais do que a superfície da trama oferece. É um projeto ousado para os atuais e homogêneos tempos atuais e, mesmo com alguns probleminhas no roteiro, vale cada segundo de exibição - principalmente por conta da surpresa da primeira cena pós-créditos...




Kal J. Moon coloca bastante alho na comida quando cozinha - só por via das dúvidas...

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