Viver nos anos 1980 (conhecida como "a década perdida") era um misto de que, apesar dos problemas globais - como guerras e complicações ambientais -, havia uma chance genuína de se vencer na vida. No Brasil da hiperinflação galopante - índices vertiginosos se comparados com os de hoje em dia -, as oportunidades eram abraçadas como se não houvesse amanhã ("porque, se parar pra pensar, na verdade não há", já diria o trovador solitário - que, vejam só, morreu da "maldita"). Mas quando, no finalzinho da década de 1980, o alerta mundial do flagelo da AIDS se pronunciou como uma das trombetas do apocalipse, meio mundo entrou em estado de pânico. No Brasil não foi diferente. E é nessa reconstituição de época que a narrativa desenvolvida na minissérie "Máscaras de Oxigênio Não Cairão Automaticamente" mais acerta.
Na trama - baseada numa história real -, em pleno Rio de Janeiro do final da década de 1980, Nando é um comissário de bordo homossexual que, após ser diagnosticado com HIV no auge da epidemia, começa a contrabandear o medicamento AZT para o Brasil, apesar do medicamento ainda não ter sido aprovado pelas autoridades de saúde locais, contando com a ajuda de amigos da companhia aérea onde trabalha e colaboração de travestis de uma boate LGBT.
Baseado numa ideia de Thiago Pimentel (do filme "Como É Cruel Viver Assim", a minissérie é uma criação da dupla Patricia Corso e Leonardo Moreira (ambos da minissérie "João Sem Deus - A Queda de Abadiânia", também responsáveis pelo roteiro) -, que destrincha a situação geral do problema de saúde pública que assolou milhares de brasileiros, a luta de poucos que acabaram se tornando dezenas e centenas, buscando algo que o governo brasileiro demorou muito tempo para buscar soluções - impossível não se lembrar, décadas depois, do ocorrido durante a pandemia de Covid-19...
Para poltronautas atentos, a trama pode lembrar o filme "Clube de Compras Dallas" - que rendeu o Oscar à dupla Matthew McConaughey e Jared Leto em 2014 -, mas vale lembrar que iniciativas parecidas ocorreram paralelamente no mundo inteiro, de forma totalmente independente dos governos de seus países pois, inicialmente, existia o erroneamente chamado "grupo de risco" (drogados, presidiários e pessoas LGBT) e deixar essas pessoas morrerem era bastante vantajoso à elite conservadora pois tratava-se de uma "limpeza ética" do chamado "câncer gay". Só que, muito rapidamente, os hospitais ficaram lotados e não havia contingente médico para tratar tantas pessoas - além disso, até membros da tal elite começaram a manifestar sintomas da doença e, só então, fez-se necessário criar um tratamento em tempo recorde para conter a situação.
(só para se ter uma ideia: o composto de tratamento experimental - na época - AZT surgiu em 1964 como remédio para tratamento de câncer mas, quando houve a insurreição do HIV - de 1987 em diante- , foi adotado como a principal opção para conter os avanços da doença - mas, no Brasil, mesmo com resultados positivos comprovados nos Estados Unidos, a permissão para uso do medicamento só foi liberado para importação a partir de 1991, porém somente no ano de 1996 que foi incorporado ao Sistema Único de Saúde - ou SUS, que, antes, era conhecido como o desorganizado INAMPS - mudou de nome e passou a atender todos os pacientes a partir da Constituição Federal de 1988, apenas um ano após o início da epidemia - para pacientes que não poderiam pagar os caros preços do similar importado, sendo que somente a partir do ano 2000 que o Brasil conseguiu gerar a versão genérica do medicamento, quase quinze anos desde a criação)
(só para se ter uma ideia: o composto de tratamento experimental - na época - AZT surgiu em 1964 como remédio para tratamento de câncer mas, quando houve a insurreição do HIV - de 1987 em diante- , foi adotado como a principal opção para conter os avanços da doença - mas, no Brasil, mesmo com resultados positivos comprovados nos Estados Unidos, a permissão para uso do medicamento só foi liberado para importação a partir de 1991, porém somente no ano de 1996 que foi incorporado ao Sistema Único de Saúde - ou SUS, que, antes, era conhecido como o desorganizado INAMPS - mudou de nome e passou a atender todos os pacientes a partir da Constituição Federal de 1988, apenas um ano após o início da epidemia - para pacientes que não poderiam pagar os caros preços do similar importado, sendo que somente a partir do ano 2000 que o Brasil conseguiu gerar a versão genérica do medicamento, quase quinze anos desde a criação)
O maior acerto da minissérie não está nas interpretações mas, sim, com a agilidade com que a trama é contada e esmiuçada. Temos a história macro - um comissário de bordo que descobre ter AIDS por conta de relações sexuais às escondidas com um famoso jogador de futebol e sabe, por meio de sua médica, que tem um medicamento que pode conter os sintomas - mas também apresenta-se histórias paralelas - a esposa que contrai a doença do marido que tinha envolvimento com uma travesti na boate que frequentava; o rapaz saudável que praticava voos de asa delta mas usava drogas injetáveis (isso era uma prática "comum" na elite carioca dos anos 1980) com agulhas compartilhadas, sucumbindo à doença; a travesti que descobre ter a doença e acaba encontrando a amizade da esposa do amante no leito de morte dele; o irmão de uma comissária de bordo que, por conta de uma transfusão de sangue, também foi alvo da doença; o delegado da Polícia Federal que namora (às escondidas) o "leão de chácara" da tal boate e desfaz o relacionamento por medo de pegar a doença (mesmo que ambos só tivessem relação sexual usando proteção) - que complementa a situação sob diversos pontos de vista, por onde o protagonista percorre e por onde a audiência monta seu quebra-cabeças sem dificuldades.
A direção da dupla Marcelo Gomes (do cultuado "Cinema, Aspirinas e Urubus") e Carol Minêm (da série "O Rei da TV") é segura, precisa e um tanto ousada quando se trata de tórridas cenas de sexo (hétero e homossexual) - que, por mais estranho que pareça, têm função "didática" na trama, para mostrar as formas de contágio nos primeiros capítulos e o aprofundamento de relacionamento entre personagens apesar de todo o medo que sentem próximo do final da trama - talvez haja um excesso desse tipo de cena, em que a trama literalmente pára com o intuito de algo "recreativo" entre os personagens. Ambos sabem bem o que querem de seu elenco pois o roteiro é muito bem amarrado e não deixa margem para deslizes - uma vez que cada capítulo tem algo importante para ser contado e muita história para desenrolar.
O afiadíssimo elenco tem diversos destaques. O principal e óbvio é, claro, Johnny Massaro (do recente filme "Aumenta Que É Rock'n'Roll", interpretando um herói involuntário, que aceita uma missão que não é sua por dever mas que precisa ser feita para evitar o pior. Muito do que o ator faz em cena é transmitido não em palavras mas pelo olhar e parcialmente pelo gestual - preste atenção em suas mãos, contando a história em muitos momentos em que as palavras se bastam. O momento mais marcante de sua performance é, quando chamado de "Robin Hood gay" (por conta do esquema de contrabando, que cobrava valores maiores de pessoas ricas contaminadas para ajudar os amigos pobres que não poderiam pagar pelo remédio), diz que "filme de terror não tem herói, tem sobrevivente".
Outro destaque do numeroso elenco vai para Ícaro Silva (do filme bacana "Legalize Já - Amizade Nunca Morre"), como o "leão de chácara" da boate Paradise e escudeiro militante da causa LGBT (que, época, era denominada "GLS"), mostrando toda a indignação diante de um absurdo e até confrontando o protagonista num momento específico da trama - quando precisa da ajuda de seu namorado da Polícia Federal e exige ajuda também para suas amigas travestis que estão com a doença. O ator traz toda a garra necessária ao personagem, além de também arrasar em cenas que exigem que cante, dance e se apresente devidamente "montado".
Também é digno de nota a química entre as atrizes Kika Sena (do filme "Paloma") e a veterana Rita Assemany (de filmes como "Central do Brasil" e "Entre Irmãs"), que protagonizam o momento mais terno da minissérie: a união entre esposa e amante travesti de um marido infectado em leito de morte numa oração praticada por uma católica e uma adepta de religião de matriz africana. O que essas duas atrizes entregam em cena é algo precioso, mostrando que, nos momentos difíceis, o acalento pode vir de onde menos se imagina.
Talvez a única atriz um tanto desperdiçada pela trama seja mesmo Bruna Linzmeyer (do recente filme "Cidade; Campo") pois sua personagem serve apenas de artifício de roteiro para conexão com outro personagem para efetuar o propósito inicial do protagonista - e depois é relegada a palavras de apoio ao melhor amigo infectado pela doença, além de se casar com ele para que seu filho tenha um pai registrado na certidão de nascimento. A única cena em que tem alguma serventia dramática se dá quando precisa executar a função de contrabando do protagonista quando ele está fisicamente debilitado e passa por um momento de "perrengue" digno do cultuado doc-reality "Aeroporto - Área Restrita" - além de ser a única membra do elenco a protagonizar uma breve cena de nu frontal da minissérie (e que não é gratuita por conta de fazer parte do componente basal do drama de sua personagem - uma gravidez indesejada de um homem casado).
A parte técnica da série é impecável. A começar pelo perfeito tema de abertura composta pela talentosa dupla Fabio Mondego e Fael Mondego (ambos de "Meu Nome Não É Johnny"), que se "apropria" de notas comuns de canções eternizadas por Madonna e Pet Shop Boys para resgatar um momento específico de transição musical de uma década, em perfeita consonância com as imagens geradas em cores cítricas e granuladas do teaser - se repetindo também em diversos momentos na série na composição da trilha sonora original, que não é invasiva mas se estabelece aos poucos, como um personagem constante.
O figurino criado por Gabriela Campos (da série "Amor da Minha Vida") tanto para a fictícia companhia aérea Fly Brasil (que, na vida real, era a Varig) tem total senso de moda da época, com cortes retos mas sóbrios, usando cores próximas do que seria um uniforme militar. Igual esmero também foi dedicado ao figurino das travestis que se apresentavam na boate fictícia Paradise pois não tinha todo o glamour que existe hoje em dia e poucas peças pareciam algo de esmero teatral nas apresentações e sim como algo criado por uma escola de samba de terceira divisão - uma vez que ainda não existia um mercado profissional de trajes na época em que se passa a história.
A maquiagem implementada por Mari Pin (do recente "Mussum - O Filmis") é um show à parte pois houve um real estudo do que era usado na época, como bastante sobriedade em senhoras comportadas da Zona Sul do Rio de Janeiro e algo que beirava o "pancake circense" tanto nas comissárias de bordo quanto nas travestis da boate - em muitos momentos, quem viveu aquela era multicolorida pode ter a impressão de estar assistindo um documentário, tamanho a precisão de cada detalhe explorado pelo trabalho primoroso de Pin.
A direção de arte comandada por Marcos Pedroso (do filme "Que Horas Ela Volta?") também acerta bastante em reproduzir bem detalhes de decoração de casas burguesas dos anos perdidos, com muitas plantas e utensílios domésticos da época como aparelhos televisores e até ventiladores de uma determinada marca - algo bem específico que só quem teve um vai se lembrar... Até aquela medonha capa da revista Veja (contando com a BIZARRA chamada "AIDS - Os que vão morrer contam sua agonia" - mais uma vez, anos 1980). O único vacilo, talvez, tenha sido numa cena, em que dois personagens pedem um mate gelado na praia e são servidos com copo de plástico - quando o contumaz da época era copo de papel (detalhe que não compromete o entretenimento mas quem sabe, sabe...).
E o que dizer da impressionante direção de fotografia de Pierre de Kerchove (da ÓTIMA - e subestimada - série "Pico da Neblina")? Traz um grande diferencial no que é costumeiramente feito no audiovisual televisivo brasileiro, usando bastantes lentes cromáticas e iluminação que trabalha muito a favor da narrativa visual - evidenciando intenções dramáticas -, além de diversas tomadas que emulam takes feitos por câmeras portáteis de filmagens caseiras dos anos 1980 e 1990, com uma granulação própria devido à baixa resolução de imagem, trazendo aquele ar "documental" em muitos momentos chave da história apresentada.
"Máscaras de Oxigênio Não Cairão Automaticamente" é uma minissérie feita com bastante esmero por parte de todas as esferas da produção e que não trata seu público como incapaz. Há momentos de sutileza e suspense dignos de grandes produções mundiais. No meio do imenso mar de mesmice do audiovisual brasileiro, é um necessário sopro de frescor para quem aprecia uma boa (e necessária) história sendo contada.
(Se você, que terminou de ler essa crítica, contraiu a doença, saiba que é verdade que AINDA não tem cura mas existe tratamento. Procure orientação médica e continue lutando pois temos de aproveitar cada momento neste planeta ao lado de pessoas que nos querem bem)
O figurino criado por Gabriela Campos (da série "Amor da Minha Vida") tanto para a fictícia companhia aérea Fly Brasil (que, na vida real, era a Varig) tem total senso de moda da época, com cortes retos mas sóbrios, usando cores próximas do que seria um uniforme militar. Igual esmero também foi dedicado ao figurino das travestis que se apresentavam na boate fictícia Paradise pois não tinha todo o glamour que existe hoje em dia e poucas peças pareciam algo de esmero teatral nas apresentações e sim como algo criado por uma escola de samba de terceira divisão - uma vez que ainda não existia um mercado profissional de trajes na época em que se passa a história.
A direção de arte comandada por Marcos Pedroso (do filme "Que Horas Ela Volta?") também acerta bastante em reproduzir bem detalhes de decoração de casas burguesas dos anos perdidos, com muitas plantas e utensílios domésticos da época como aparelhos televisores e até ventiladores de uma determinada marca - algo bem específico que só quem teve um vai se lembrar... Até aquela medonha capa da revista Veja (contando com a BIZARRA chamada "AIDS - Os que vão morrer contam sua agonia" - mais uma vez, anos 1980). O único vacilo, talvez, tenha sido numa cena, em que dois personagens pedem um mate gelado na praia e são servidos com copo de plástico - quando o contumaz da época era copo de papel (detalhe que não compromete o entretenimento mas quem sabe, sabe...).
E o que dizer da impressionante direção de fotografia de Pierre de Kerchove (da ÓTIMA - e subestimada - série "Pico da Neblina")? Traz um grande diferencial no que é costumeiramente feito no audiovisual televisivo brasileiro, usando bastantes lentes cromáticas e iluminação que trabalha muito a favor da narrativa visual - evidenciando intenções dramáticas -, além de diversas tomadas que emulam takes feitos por câmeras portáteis de filmagens caseiras dos anos 1980 e 1990, com uma granulação própria devido à baixa resolução de imagem, trazendo aquele ar "documental" em muitos momentos chave da história apresentada.
"Máscaras de Oxigênio Não Cairão Automaticamente" é uma minissérie feita com bastante esmero por parte de todas as esferas da produção e que não trata seu público como incapaz. Há momentos de sutileza e suspense dignos de grandes produções mundiais. No meio do imenso mar de mesmice do audiovisual brasileiro, é um necessário sopro de frescor para quem aprecia uma boa (e necessária) história sendo contada.
(Se você, que terminou de ler essa crítica, contraiu a doença, saiba que é verdade que AINDA não tem cura mas existe tratamento. Procure orientação médica e continue lutando pois temos de aproveitar cada momento neste planeta ao lado de pessoas que nos querem bem)
Kal J. Moon era uma criança nos anos 1980, aprendeu num trabalho escolar o que significava cada letra da sigla AIDS e achava que, quando adulto, todo mundo estaria contaminado com HIV. Ainda bem que estava errado...
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