Meu caro drugui, devo lhe dizer que se você não está preparado para se aventurar numa escrita horrorshow, talvez você não seja um tchelovek que deveria ler "Laranja Mecânica". Se sentiu confuso? Não tem problema, eu também me sentiria se não tivesse lido esse clássico da ficção-científica, escrito pelo brilhante Anthony Burgess. Mas não se preocupe, ao mesmo tempo que isso pode ser um desafio no início do livro - a primeira página em si eu não compreendi quase nada ao ler pela primeira vez - a linguagem nadsat, usada pelos adolescentes do livro, começa a fazer sentido com o passar da leitura, e se torna até mesmo natural ao leitor, gerando um encanto único à experiência que é ler "Laranja Mecânica".

Provavelmente seu primeiro contato com a história do livro tenha sido a partir do filme homônimo de 1971, dirigido por Stanley Kubrick, e devo lhe dizer que esse não é um mal começo. A adaptação se mantém fiel ao livro em muitos aspectos, mas sobretudo na história, que é quase a mesma, se não fosse pela ausência do capítulo final do livro, que foi retirado das edições americanas da época desse filme, por conter um final um tanto quanto "otimista" em relação ao resto do livro. Isso é, obviamente, uma calamidade contra a obra, mas, para fins práticos, podemos dizer que a culpa do final do filme ser diferente daquele do livro se dá a um problema editorial em si, e não de Kubrick. 

Em relação ao livro em si, deve-se ter em mente que Burgess cria uma sociedade com uma juventude hostil, que pratica atos criminosos como se fosse algo rotineiro, como escovar os dentes. Mesmo que inicialmente atenuada pelo desconhecimento do significado dos termos nadsat, a linguagem do livro é pesada, quando passamos a entender o que significam o toltchok, króvi, britva e os outros termos. Burgess não poupa o leitor de situações de violência extrema, mas isso tem um motivo na trama, por dar base ao que seria uma grande questão no livro: se a bondade for imposta a um indivíduo, seria essa bondade real? Ou apenas a benevolência inata seria aquela que deveria se admirar?


Essas questões e outras fazem parte das discussões presentes em "Laranja Mecânica", que abordam temas variados desde os modelos dos sistemas prisionais da época até a influência das gangues na criminalidade regional da Inglaterra dos anos 1960's. Assim, a temporalidade é algo importantíssimo na obra de Burgess. Ao nos colocar nesse futuro, o autor previa o resultado que ocorreria se acontecimentos de sua época fossem levados ao extremo. O olhar da época sentia uma estranheza não apenas na linguagem, como temos atualmente, mas também em toda a sociedade que foi construída pelo escritor, algo que hoje nos é banal, já que a ultraviolência não nos choca mais, já que tantas obras depois dessa a abordaram ampla e extensamente. Ao inserir Alex como o narrador da história, Burgess incitava a reflexão no leitor inglês de sua época, colocando-o na cabeça de um criminoso convicto, que em muitos momentos faz coisas que são abomináveis e desprezíveis, mas que ao se dirigir ao leitor de forma tão inclusiva e simpática, faz com que nós nos perguntemos se ele não é apenas um fruto de um meio caótico gerado por um sistema decadente, se ele não seria na verdade uma vítima de todo aquele sistema, mesmo que ele seja o causador de tantas calamidade e infortúnios na vida de outros cidadãos. A resposta a essa reflexão eu deixarei para que você decida, afinal, a experiência que o livro nos oferece deve ser pessoal e, portanto, única. 

O impacto causado por essa obra é gigantesco, atingindo um público ainda maior com o filme de Kubrick. Esse livro é um daqueles que considero obrigatório não apenas ao leitor de sci-fi, mas a qualquer leitor, qualquer pessoa. "Laranja Mecânica" nos coloca em meio ao caos, nos colocando a par do que o ser-humano é capaz em situações extremas, mas também nos lembra que, no fundo, talvez ainda haja esperança na humanidade. Bem e mal se confundem em todas as esferas, por nos confrontarmos com políticos que dizem fazer o bem para a sociedade, mesmo que ele cause o mal a uma quantidade menor de indivíduos, apenas com o fim de manutenção do poder, e também nos mostra o mal, que ao ser confrontado com a maldade que causa, acaba por refletir se esse é o caminho a ser seguido. 

Devo lembrar ao que esse livro, apesar de curto, não é uma leitura fácil - a presença de glossários nadsat em algumas edições e na internet na minha opinião faz com que a magia dessa escrita seja perdida, já que o livro original não continha o significado das palavras - não apenas pela linguagem, mas também pelo conteúdo em si. Claro que se a história for vista de um modo linear e sem muitas reflexões, a leitura será simples, mas se o leitor preferir se indagar acerca dos temas abordados, e do modo como são apresentados, creio que a leitura será mais complexa e trará reflexões éticas e morais que não apresentam resposta. E, acredite em mim, essa é a beleza de "Laranja Mecânica"