Criado por Danny McBride, estrelado pelo próprio McBride, ao lado de Adam Devine, Edi Patterson e grande elenco (com participação especial de John GoodmanWalton Goggins), o seriado "The Righteous Gemstones" mostra os bastidores de uma atividade religiosa popular no mundo inteiro, ainda que não muito benquista por alguns: o tele-evangelismo neo-pentecostal. Mas o que acontece do outro lado da telinha da TV após as câmeras se desligarem? Talvez não seja uma resposta muito agradável de se ouvir...


Homens de pouca fé
Antes de iniciar, é necessário avisar que esta crítica se refere exclusivamente ao que é mostrado neste seriado que, sim, é uma obra de ficção mas com muitas passagens baseadas em casos e histórias reais. Dito isto, que fique bem claro: não existe a menor intenção de atacar ou denegrir qualquer religião, ainda que seja necessário fazer referência a alguns fatos da vida real para criar paralelos com a análise aqui apresentada, ok?

O roteirista e comediante Danny McBride cresceu numa igreja evangélica e sua mãe é ministra do Evangelho. Segundo dizem, a inspiração para criar as personagens de "The Righteous Gemstones" deu-se quando ele se mudou para Charleston e percebeu a grande quantidade de igrejas na localidade. Ainda segundo o que se especula, sua real intenção não era a de se levantar contra a religião mas sim mostrar um outro lado de pessoas hipócritas - algo que acontece em qualquer ramo religioso. E nesse seriado, o espectador pode ver - com riqueza de detalhes - os bastidores de uma grande operação promovida por profissionais que enriquecem com a exploração da fé alheia. A discussão da trama não é sobre se é certo ou errado ter fé no que quer que seja mas sim sobre como existem pessoas inescrupulosas que podem se aproveitar de pessoas inocentes em nome do que quer que se professe, pois isso não é o que acreditam mas, sim, sua... profissão. 

Na trama, Dr. Eli Gemstone (Goodman) é o patriarca da família de evangelistas neo-pentecostais mundialmente famosos e comanda um verdadeiro "império da fé" pelo mundo para levar boas-novas a quem precisa. Ele divide parte da missão com seus filhos, os pastores Jesse (McBride) e Kelvin (Devine), além de contar com a ajuda de sua filha Judy (Patterson) com trabalhos menores neste empreendimento. Eli perdeu sua esposa há alguns anos - com quem iniciou a igreja - e sente que precisa que seus filhos se dediquem para herdar seu ministério. Mas eles brigam o tempo todo, desde quando eram crianças. Até que, um dia, Jesse recebe uma mensagem no celular de alguém que se diz ser o capiroto e que ameaça vazar um vídeo de orgia - (sexual e drogas) entre ele, membros administrativos da igreja e prostitutas durante o que deveria ser um congresso religioso - caso não receba um milhão de dólares em dinheiro vivo em data e local combinados em poucos dias. E aí começamos a perceber quem realmente são os irmãos Gemstone e parte daquela associação religiosa.


Para começo de conversa, essa é uma história sobre as maçãs podres no cesto. A igreja comandada por Dr. Eli e sua família é gigantesca, a ponto de assustar pastores do meio-oeste dos Estados Unidos que o procuram pedindo para ir à cidade vizinha a fim de não perderem fiéis para a nova igreja, que se instala em imóveis gigantescos e espaços caríssimos em shoppings. Mas a expansão territorial não é o principal problema da trama - é só o vislumbre de uma família cujo "negócio" é comandado por pessoas que pouco ou nada tem próximo de algo que possa ser considerado divino.

A pesquisa feita para dar veracidade às personagens, situações, ritos, canções entoadas em determinadas cenas, logotipos, gestuais de alguns atores e até mesmo a prosódia escolhida em determinadas falas é impressionante - principalmente se o espectador já assistiu algum culto evangélico estrangeiro pela televisão (ou mesmo algo produzido por aqui). E quando mencionamos pesquisa, é bem fácil identificar de "quem" a série está falando pois diversos escândalos financeiros e morais envolvendo líderes evangélicos ocorreram desde meados da década de 1980 até hoje, tanto nos Estados Unidos quanto no restante do mundo (incluindo o Brasil). E algumas cenas e menções são feitas durante a trama - evidenciando como é administrada a enorme quantidade de dinheiro arrecadada durante os cultos, mostrando que a igreja fictícia tem estúdios próprios de gravação de última geração para seus programas, dentre outros detalhes que chamam a atenção para quem nunca teve acesso a estes bastidores - com certeza, este tipo de informação foi passado por alguém que sabe muito bem do que está falando...

(Lembrando que este tipo de "história-denúncia" não é inédita, remetendo a filmes como "Fé Demais Não Cheira Bem" (estrelado por Steve Martin em 1992) e a minissérie global "Decadência" (de autoria de Dias Gomes, estrelado por Edson Celulari em 1995) - ou mesmo a paródia "Tim Tones" criada por Chico Anysio na década de 1980...)

Porém, mesmo com todo o esforço para trazer verossimilhança à história, alguns erros graves foram cometidos. O principal é que o patriarca da família criou um memorial num suntuoso jardim na descomunal mansão com direito à uma estátua de sua falecida esposa - e não, evangélicos, por si só, não tem o costume de erigir monumentos aos mortos, por mais queridos que sejam. Outro detalhe é que muitos membros da família, assim como outros frequentadores da igreja, xingam e proferem palavras de ódio a torto e a direito. E também bebem bebidas alcoólicas. Ainda que o visual de McBride lembre bastante o utilizado por Elvis Presley na fase Las Vegas - outro que veio de lar evangélico mas seguiu outro rumo (e, mesmo assim, gravou algumas canções religiosas em seu repertório) -, suas atitudes não parecem de alguém que nem disfarça que não é lá muito seguidor da Palavra. E que pai ou mãe que segue o Evangelho daria a um filho o nome de Pôncio?


Sim, são meros detalhes mas que se colocados em favor do andamento da trama, haveria algum momento mais dramático como a ruptura com valores e crenças, nem que isso fosse feito por pessoas mais religiosas que os protagonistas, gerando espanto, comoção ou descrença. E isso é um furo do roteiro quando vemos diversos personagens exagerados na caricatura para promover algo que mais parece uma comédia pastelão do que algo com mais substância. 

Fazendo um paralelo, assim como Alan e Charlie Harper - protagonistas de "Two and the Half Men" - são os equivalentes de Abel e Caim, o trio de irmãos Jesse, Kelvin e Judy Gemstone estão mais para "Os Três Patetas", se engalfinhando como crianças, em atitudes infantis antes de começar um culto importante, fazendo gestos obscenos pelas costas uns dos outros ou mesmo se xingando e se espancando a bel prazer. O que, a princípio, é para mostrar que o patriarca da família ainda tenta seguir o caminho trilhado originalmente por ele e sua falecida esposa, seus filhos agem como se servir a Deus fosse apenas o modo como ganham a vida, financeiramente falando, claro. E o que se vê em tela é tudo, menos engraçado. Constrangedor na maioria das vezes, mas não engraçado. Mas sabe o que é pior? Quem frequenta o meio religioso retratado no seriado vai identificar cada comportamento errático, cada palavra torta, cada gesto equivocado em muitas pessoas reais que estão, infelizmente, deturpando uma crença legítima e saudável por conta da ganância e da arrogância...

Os destaques do elenco são John Goodman, Walton Goggins, Tony Cavalero e Dermot Mulroney, Goodman passa veracidade como o líder religioso austero porém enérgico quando precisa ser - a cena da corrida de homens nus no shopping dá pra perceber que o ator está se divertindo a valer (e a cena final de oração por alguém enfermo é tocante e comovente - e até surpreendente - como deveria ser). Goggins repete um pouco os trejeitos de seu personagem em "Os Oito Odiados" mas sabemos que ele mirou - e acertou! - num famoso cantor e tecladista evangélico norte-americano e num conhecido evangelista estadunidense (que já teve cultos dublados transmitidos no Brasil).


Cavalero
mostra o que acontece com pessoas que são do extremo oposto e se convertem ao cristianismo mas, em algum momento, por algum motivo, passam a seguir homens e não a Deus - quando os homens os decepcionam, a crença deixa de fazer sentido e abandonam a fé (sua interpretação é perfeitamente crível e uma cena chega a dar pena de sua personagem). Já Mulroney interpreta um pastor de uma pequena igreja do meio-oeste que pede para que a igreja dos Gemstones não se instale em sua cidade - sua serenidade e seu temor em cena é permeável (ainda que seja bem estranho que pastores tenham espingardas penduradas em suas garagens - mas nos Estados Unidos as leis são diferentes).

Ainda que a trama comece "metendo o pé na porta", aos poucos vai tentando trazer os protagonistas para o "lado do bem". E mesmo que seja bem óbvio TUDO o que vai ocorrer na trama, a jornada é algo que vale a pena acompanhar. A história contada é um pouco "esticada" - ao fim do oitavo episódio, tem-se a impressão de que poderia parar por ali que seria o gancho perfeito para a próxima temporada mas a trama reinicia para encerrar de forma bem surpreendente, garantindo uma espécie de redenção aos protagonistas. Não a redenção que se espera mas algo próximo do que aconteceria na vida real.

A primeira temporada de "The Righteous Gemstones" não é exatamente um programa imperdível como se esperaria de algo com tamanha gama de informação sobre um assunto que ainda é tabu tanto dentro quanto fora das igrejas, mas entretém a ponto de se querer saber onde essa jornada vai dar. Assista com a cabeça aberta.





Kal J. Moon gostaria que voltasse o tempo em que a Bíblia Sagrada era a única arma daquele que diz amar a Deus...



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