Antes de começar, gostaria de dizer que este é, talvez, um dos textos mais difíceis que escrevo. Principalmente por ser um homem mestiço (pai branco, mãe negra) e que cresceu na periferia do Rio de Janeiro, onde ainda vivo. E dentro desse cenário, qualquer exemplo de êxito serve para diminuir um pouco as mazelas do dia a dia e trazer esperança de um futuro melhor.

E quando vemos ícones da infância e adolescência que vieram de locais periféricos semelhantes ao que nós mesmos experimentamos - Bed Stuy e Philadelfia são bem semelhantes a qualquer município da Baixada Fluminense (RJ) ou da Zona Leste (SP), se pararmos para pensar -, isso causa um choque de realidade que não podemos deixar de comentar a respeito.


Até o limite da honra
Como os poltronautas já devem imaginar, estou me referindo ao incidente conhecido como "Tapa no Oscar" (ou "Oscar do Tapa"), que ocorreu na noite de 27/03/2022 quando Will Smith (foto) deu um tapa na cara do comediante Chris Rock (foto) após este dizer uma piada sobre a falta de cabelo da atriz e apresentadora Jada Pinkett-Smith (e esposa de Will, foto). Esse momento constrangedor ocorreu durante a apresentação dos indicados ao prêmio de Melhor Documentário (longa-metragem).

A piada dita por Rock era que Jada estaria pronta para estrelar a sequência de "G.I. Jane" (aqui no Brasil esse filme chama-se "Até o Limite da Honra") por conta de sua falta de cabelo. No mesmo instante, Jada revira os olhos em sinal de desagrado. Will estava rindo até "a ficha cair". O ator sobe o palco - ele e sua esposa estavam sentados bem em frente, à direita - e desfere o tapa, repetindo a frase “Mantenha o nome da minha esposa fora da p***** da sua boca”, inclusive depois de descer do palco e ir sentar-se.

Rock, surpreso (e visivelmente envergonhado - mas ainda com sorriso nos lábios), além de um tanto desnorteado, ainda arranja tempo para dizer "Levei uma surra de Will Smith. Esta é a maior noite na história da televisão", sendo agraciado com risos da platéia, o que fez com que muitos telespectadores - inclusive brasileiros - achassem que era "tudo parte do show". E não, não tinha nada de encenado - ou engraçado - no que ocorreu. Muito pelo contrário, eu diria...

(para quem tiver curiosidade, pode assistir este vídeo sem cortes - mas corra pois não se sabe quanto tempo estará no ar)

O problema real é que Rock e Smith são desafetos há algum tempo. A gota dágua talvez tenha sido a infeliz piada direcionada à esposa de Smith (vítima de alopecia, doença auto-imune que provoca perda de cabelos ou de pelos em qualquer parte do corpo mas, em geral, o tipo mais comum é justamente a calvície - desde 2018, ela adotou a cabeça raspada em seu visual). Porém, em 2016, Rock já havia proferido comentários debochados a respeito do casal em seu monólogo sobre a discussão gerada pelo movimento "Oscar So White", em que vários atores, atrizes e profissionais do cinema mundial reivindicavam explicações da Academia a respeito de não ter negros indicados às principais categorias daquele ano.

Na ocasião, Rock disse que Smith deveria ter sido indicado por "Um Homem Entre Gigantes" mas também não entendia como o próprio Smith havia ganho tanto dinheiro para estrelar "As Loucas, Loucas Aventuras de James West" (considerado como o maior fracasso da carreira de Smith, tanto de crítica quanto de bilheteria).

(resumindo: elogia de um lado mas esfrega o fracasso de outro ao mesmo tempo, para o mundo inteiro ouvir)

No mesmo monólogo, Rock refuta o boicote de Jada, uma vez que ela era apresentadora de TV e parte do elenco do seriado "Gotham", o que, por si só, invalidaria sua fala pois não estaria escalada em nenhum filme indicado aquele ano.

(resumindo, de novo: manda a esposa de outro cara calar a boca pois ela supostamente não teria direito de reclamar, né?)

Quem conhece os espetáculos de improviso de Chris Rock sabe que ele faz a linha "sem papas na língua", atingindo o cúmulo do politicamente incorreto. A única exceção que ele abriu, em toda sua carreira como comediante, foi o de parar de usar a palavra que começa com a letra "N" e que seria considerada ofensiva tanto para negros quanto para, bem, para qualquer pessoa, independente da cor de sua pele. Seu humor segue a linha da ofensa. Pode nem ser pessoal mas foi com esse formato que ele fez sucesso e construiu sua carreira.

Mas vale lembrar: os textos proferidos durante a transmissão do Oscar são previamente redigidos - mesmo que pelos próprios apresentadores -, ensaiados e recitados com o auxílio da leitura de um teleprompter. Será que ninguém na produção sequer pesquisou se Jada Pinkett-Smith e o próprio Will Smith não ficariam, no mínimo, chateados de ver Chris Rock debochar do "corte de cabelo" (ou da ausência dele) da atriz em rede nacional (ou mundial) - principalmente por já ter acontecido no passado?

Bem, existem algumas regras não-escritas seguidas pelo povo afro-americano que tentam evitar que situações como a do "Tapa no Oscar" ocorram. São elas:

- Não fale mal de uma mulher negra casada na presença de seu marido: Apesar de bem básico, o conselho refere-se ao perigo que pode ocorrer durante o discurso ou piada. Ainda que quem esteja ouvindo tenha algum tipo de laço de amizade, isso deve ser evitado - mesmo se tiver intimidade com o casal. A insistência pode resultar em agressão verbal ou física...

- Não fale mal do cabelo de negros (as): Não importa a ocasião ou grau de amizade / intimidade. Nunca, em hipótese alguma, deve-se debochar (em público ou numa roda de amigos) do cabelo de uma pessoa negra. Se para brancos pega bem mal, para negros é visto como "trair o movimento". Pois o cabelo de uma pessoa negra representa sua "coroa", o fim da escravidão da estética "brancocêntrica". Negros e negras usam seus cabelos como uma forma de se expressarem em silêncio e são livres para penteá-los ou cortá-los da maneira que bem entenderem. Dito isso, não é legal debochar de cortes de cabelo de negros ou negras - a situação fica pior se a pessoa a fazer isso for negra.

- Não compare negros (as) com brancos (as): No início da piada proferida por Rock, ele diz "Jada, amo você. Espero vê-la em G.I. Jane 2!". O que parece apenas um gracejo inofensivo de uma possível sequência para o filme "Até o Limite da Honra" - filme estrelado por Demi Moore (foto), onde a atriz interpreta uma soldado que, em dado momento, raspa a cabeça para servir o exército - torna-se algo bem maldoso por comparar o corte de cabelo de Jada (uma atriz negra) ao de Demi (uma atriz branca) e que apenas isso já seria o suficiente para que a atriz fizesse uma continuação do filme. Até porque a internet não teria nenhum problema com uma atriz negra substituindo uma atriz branca num filme, né?

- Não deboche de negros (as) diante de um público majoritariamente branco: Por último, a regra mais importante de todas. Quando se tem laços de amizade e está todo mundo no clima, estando no meio de pessoas negras, determinadas piadas e zoações até passam, dependendo do "peso" da pilhéria. Mas quando se é negro (a), não se deve fazer nenhum tipo de piada depreciativa (comparação de negros com brancos, piada sobre o cabelo, falar mal da esposa de um "chegado") na frente de uma audiência majoritariamente branca, não importando o número de pessoas na plateia pois também é algo considerado como "trair o movimento", uma vez que afro-americanos se consideram como irmãos.

(como disse, são regras não-escritas e não se encontra um 'manual de boas maneiras' com esses tópicos em lugar algum mas Chris Rock violou tudo com uma piada de menos de dez segundos de duração)

Longe de tentar fazer sensacionalismo, temos de ter em mente a seriedade do ocorrido e suas prováveis consequências. Após a cerimônia, a Polícia de Los Angeles foi chamada. Interpelado, Chris Rock não desejou prestar queixa - pois é, a questão virou caso de polícia. Durante a madrugada, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood fez um breve comentário em seu perfil do Twitter repudiando toda forma de violência (é bem provável que solte uma nota de repúdio mais completa nos próximos dias).

Independente de Smith estar certo ou não, o ator pode ter de devolver a estatueta que ganhou por seu papel em "King Richard - Criando Campeãs", uma vez que comportamento violento fere as novas diretrizes para ser - e permanecer - elegível ao prêmio de Melhor Ator. Já pensou se Smith ser o primeiro ator negro a sofrer essa reprimenda da Academia? Pois é.

E Rock provavelmente nunca mais será chamado para apresentar um seguimento do que era para ser considerada a maior premiação do Cinema.

A pecha de "brigão" - que sempre perseguiu Smith em sua carreira, sendo chamado de "controlador" em sets de filmagem, a ponto de recusar papeis onde ele não possa ser o herói -, que já é ruim para qualquer profissional do cinema, fica ainda pior quando se trata de uma pessoa afrodescendente. E num raro ano onde tivemos dois atores negros concorrendo à maior glória que a arte cinematográfica pode alcançar, ficou marcado por um vexame protagonizado por dois ícones afro-americanos num terrível destaque negativo para ambos os lados. O pior é ter de ouvir que é por isso que atores negros não são indicados a prêmios com mais frequência...

E você, que chegou até aqui, sabe que a fama sempre gruda, independente da quantidade de acertos que se comente ao longo de uma carreira. Smith poderia ter simplesmente feito algum sinal com as mãos pedindo para que Rock parasse com a piada ou ter dito num curto discurso quando subiu ao palco que sua esposa não merecia aquele tipo de tratamento. Violência, ainda que em defesa da honra de sua esposa, nunca é a melhor solução - principalmente quando se tem tanto a perder.

Após o ocorrido, o ator Denzel Washington chegou-se perto de Will Smith e disse-lhe ao pé do ouvido um sábio conselho: "No seu momento de brilhar, seja cuidadoso pois é quando o diabo se levanta contra você". De fato, é mesmo um sábio conselho.

Resumindo, pela última vez: SHAME ON YOU, Chris Rock & Will Smith! SHAME ON YOU BOTH!!!


Kal J. Moon não achou, em nenhum momento, que o "Tapa no Oscar" fosse uma encenação. Se fosse, Smith seria um ator bem mais convincente do que ele realmente é...


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