Durante recente entrevista para o canal Omelete, quando perguntado sobre a proposta inicial da série "Cidade de Deus - A Luta Não Para", o diretor Aly Muritiba respondeu que "a ideia de continuar contando a história partiu da produtora [do filme original] Andrea Barata Ribeiro e do Paulo Lins [autor do livro que deu origem ao filme original], mas eles não tinham uma premissa muito bem definida a não ser que, já que seria uma continuação da história [original], faríamos com os mesmos personagens que vieram do filme...". Guarde essa informação.
É sempre motivo de ansiedade ver uma nova produção audiovisual brasileira alcançando voos maiores - tanto nem Terra Brasilis quanto no exterior - do que se está acostumado a ver, como diversos trailers, cartazes, matérias em sites gringos e aquela velha esperança de que "agora vai!". Mas, infelizmente, desde o primeiro capítulo, assistir o desenvolvimento de "Cidade de Deus - A Luta Não Para" é um misto de (alguma) empolgação e (muita) frustração. E o principal motivador do material frustrante está justamente na frase acima dita pelo diretor geral da série.
O material que se origina a(s) nova(s) história(s) tem embasamento muito frágil. A começar pela decisão tomada pela personagem Jerusa (exageradamente interpretada pela atriz Andréia Horta, que abusa de caretas e trejeitos), uma advogada, responsável por tirar o bandido Bradock da prisão e, por si só, alguém de quem se espera decisões mais ponderadas e estratégicas. O que a personagem faz no final do primeiro episódio parece algo escrito por alguém que nunca morou numa periferia de alta periculosidade, tamanha a inocência em relação às consequências imediatas de seu ato.
Vale destacar apenas esse acontecimento pois é exatamente quando o rumo da nova trama começa a dar muito errado - mas ainda tinha conserto, bastando apenas uma correção de rota nos capítulos seguintes, revelando reais intenções por trás do acontecimento e, aí sim, colocando consequências mais próximas da realidade naquela história.
O problema é que o time de roteiristas - Sergio Machado, Renata Di Carmo, Estevão Ribeiro, Armando Praça, Rodrigo Felha, além do próprio Muritiba - resolveu seguir o esquema "TV Globo" de contar histórias (mais especificamente o jeito "novelesco" de contar histórias), povoando a trama de personagens completamente descartáveis que ou morrem para servir a algum propósito posterior ou que definitivamente "não fedem nem cheiram", somente para criar um novo microcosmo por onde os antigos personagens possam transitar.
(Nada contra narrativas próprias de TVs abertas mas a proposta de série não deve se assemelhar às de telenovelas, justamente para que, tanto o público do filme original quanto novos públicos - inclusive estrangeiros - consigam "alcançar" a mensagem sem precisar se perguntar "por que tal personagem está agindo dessa forma, uma vez que é totalmente ilógico - como meter o dedo na cara e gritar com traficante, correr desprotegido no meio de fogo cruzado ou transitar sem proteção ou escolta por local onde sua ação anterior causou prejuízo à meliantes locais - mesmo para quem não more em situação periférica?")
Quanto aos personagens restantes, há um grave problema no tocante ao fotógrafo Wilson - vulgo "Buscapé" -, uma vez que no filme original era ele quem dava o tom da narrativa e na série ele tem pouca (ou quase nenhuma) relevância com o que está acontecendo. Além do personagem ser mal escrito - e, pior, mal estruturado em suas motivações -, é doído dizer que o ator Alexandre Rodrigues não consegue entregar toda a complexidade dramática pela qual sua personagem passa durante esta primeira temporada - mas, justiça seja feita, isso é mais culpa do confuso roteiro e da atrapalhada direção do que propriamente do ator. Provavelmente, não à toa que Buscapé não aparece tanto quanto outros personagens, para não comprometer tanto o que se pode entregar.
O grande destaque dramático se dá mesmo com a atriz Roberta Rodrigues e sua Berenice - lembrando que o filme original foi responsável por sua estreia nas artes dramáticas -, que cresce ao longo da trama e tem as melhores falas, situações e estofo que o roteiro pode oferecer. Sim, sabe-se que sua personagem tem a missão de carregar a "bandeira" dos direitos humanos para pessoas do local onde mora (e que antes eram defendidos por outro personagem) mas, mesmo com todo "discurso inflamado", a atriz consegue "subir o nível" do que pode parecer uma mera "panfletagem partidária" - tem alguma, sim, mas menos do que se imagina.
A trama brilha mesmo quando se foca em pequenos momentos que são mais interessantes do que o todo, como o dilema do personagem ZeroOnze (corretamente defendido por Rafael Losso), um aliado da milícia que cometeu um erro no passado e acabou sendo responsável por levar um religioso para o mundo da bandidagem. É aquela percepção de que o ordinário e perfeitamente comum (mas não menos aterrador) sobrepõe o extraordinário.
O restante do gigantesco elenco ou está operacional ou exagerado. Um exemplo claro disso é o núcleo "político", com personagens beirando ao que seria feito em "A Praça É Nossa" ou como o Bradock de Thiago Martins, que parece tão perdido quanto o que o roteiro pede para sua personagem, não sabendo passar a dubiedade de objetivos que a confusa trama pede, indo para o lado mais fácil de qualquer vilão folhetinesco: ficar à beira da loucura (com direito à citação visual de "O Poderoso Chefão" e tudo). Aliás, o roteiro é tão desleixado que começa numa situação de perigo para Buscapé, volta no tempo para explicar como ele chegou àquela situação e não volta para mostrar o que diabos estava acontecendo ali...
(Mas lembre-se que "eles não tinham uma premissa muito bem definida", certo? Pois é...)
A primeira temporada de "Cidade de Deus - A Luta Não Para" estabelece diversos movimentos errados no tabuleiro da dramaturgia mas, em poucos momentos, mostra a que veio. Com um pouquinho de menos invencionice, mais pesquisa e personagens melhores estruturados, pode ser que a segunda temporada (já confirmada) funcione pois todas as pautas temáticas apresentadas são muito importantes e, mesmo que a série se passe em 2002, pouco (ou quase nada) mudou no Brasil de lá pra cá. Mas falta coesão narrativa e um pouco mais de equilíbrio ao que será apresentado. Para quem é fã do filme original, assista com baixa expectativa e tire suas próprias conclusões.
Kal J. Moon mora em periferia desde que nasceu e desafia o mundo sem sair de casa...
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