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CRÍTICA [STREAMING] | "Cidade de Deus - A Luta Não Para" (Temporada 1), por Kal J. Moon

Produzida por Fernando Meirelles (cineasta do filme original), estrelada por nomes como Alexandre Rodrigues, Roberta Rodrigues, Thiago Martins, Andréia Horta, Marcos Palmeira e grande elenco, "Cidade de Deus - A Luta Não Para" é o perfeito exemplo de que não se deve mexer em time que está ganhando...


Cidade de Elite - O Inimigo Não Para
Durante recente entrevista para o canal Omelete, quando perguntado sobre a proposta inicial da série "Cidade de Deus - A Luta Não Para", o diretor Aly Muritiba respondeu que "a ideia de continuar contando a história partiu da produtora [do filme original] Andrea Barata Ribeiro e do Paulo Lins [autor do livro que deu origem ao filme original], mas eles não tinham uma premissa muito bem definida a não ser que, já que seria uma continuação da história [original], faríamos com os mesmos personagens que vieram do filme...". Guarde essa informação.

É sempre motivo de ansiedade ver uma nova produção audiovisual brasileira alcançando voos maiores - tanto nem Terra Brasilis quanto no exterior - do que se está acostumado a ver, como diversos trailers, cartazes, matérias em sites gringos e aquela velha esperança de que "agora vai!". Mas, infelizmente, desde o primeiro capítulo, assistir o desenvolvimento de "Cidade de Deus - A Luta Não Para" é um misto de (alguma) empolgação e (muita) frustração. E o principal motivador do material frustrante está justamente na frase acima dita pelo diretor geral da série.


Na trama de "Cidade de Deus - A Luta Não Para" - que se passa nos anos 2004, cerca de 20 anos após os eventos mostrados no filme original -, a libertação de um jovem traficante da prisão faz com que a Cidade de Deus e os moradores ficam presos numa nova disputa entre traficantes, milícias e governo - tudo baseado no relato do agora fotógrafo profissional Wilson (ou "Buscapé"), que acompanha tudo com muito interesse e apreensão, uma vez que sua idosa mãe e sua filha ainda moram na Cidade de Deus.

O material que se origina a(s) nova(s) história(s) tem embasamento muito frágil. A começar pela decisão tomada pela personagem Jerusa (exageradamente interpretada pela atriz Andréia Horta, que abusa de caretas e trejeitos), uma advogada, responsável por tirar o bandido Bradock da prisão e, por si só, alguém de quem se espera decisões mais ponderadas e estratégicas. O que a personagem faz no final do primeiro episódio parece algo escrito por alguém que nunca morou numa periferia de alta periculosidade, tamanha a inocência em relação às consequências imediatas de seu ato.


Vale destacar apenas esse acontecimento pois é exatamente quando o rumo da nova trama começa a dar muito errado - mas ainda tinha conserto, bastando apenas uma correção de rota nos capítulos seguintes, revelando reais intenções por trás do acontecimento e, aí sim, colocando consequências mais próximas da realidade naquela história.

O problema é que o time de roteiristas - Sergio Machado, Renata Di Carmo, Estevão Ribeiro, Armando Praça, Rodrigo Felha, além do próprio Muritiba - resolveu seguir o esquema "TV Globo" de contar histórias (mais especificamente o jeito "novelesco" de contar histórias), povoando a trama de personagens completamente descartáveis que ou morrem para servir a algum propósito posterior ou que definitivamente "não fedem nem cheiram", somente para criar um novo microcosmo por onde os antigos personagens possam transitar.

(Nada contra narrativas próprias de TVs abertas mas a proposta de série não deve se assemelhar às de telenovelas, justamente para que, tanto o público do filme original quanto novos públicos - inclusive estrangeiros - consigam "alcançar" a mensagem sem precisar se perguntar "por que tal personagem está agindo dessa forma, uma vez que é totalmente ilógico - como meter o dedo na cara e gritar com traficante, correr desprotegido no meio de fogo cruzado ou transitar sem proteção ou escolta por local onde sua ação anterior causou prejuízo à meliantes locais - mesmo para quem não more em situação periférica?")


Voltando à personagem Jerusa, ainda que se justifique posteriormente nos capítulos que ela fazia parte de um esquema muito maior por conta de envolvimento político, uma personagem que tem profundo conhecimento da lei não tomaria decisões descabidas desde o começo da história - mandaria alguém fazer no lugar dela, certo? E ainda tem o agravante de que a personagem tem envolvimento ~"amoroso" com dois outros personagens - das duas esferas do ~"poder" -, a fim apenas de galgar sua escalada para alcançar uma posição privilegiada nalgum momento futuro. Só faltou ter um bordão engraçadinho para se parecer mais com personagem principal de novela das oito...

Quanto aos personagens restantes, há um grave problema no tocante ao fotógrafo Wilson - vulgo "Buscapé" -, uma vez que no filme original era ele quem dava o tom da narrativa e na série ele tem pouca (ou quase nenhuma) relevância com o que está acontecendo. Além do personagem ser mal escrito - e, pior, mal estruturado em suas motivações -, é doído dizer que o ator Alexandre Rodrigues não consegue entregar toda a complexidade dramática pela qual sua personagem passa durante esta primeira temporada - mas, justiça seja feita, isso é mais culpa do confuso roteiro e da atrapalhada direção do que propriamente do ator. Provavelmente, não à toa que Buscapé não aparece tanto quanto outros personagens, para não comprometer tanto o que se pode entregar.


Em relação ao escopo geral do roteiro, quem é carioca e acompanhou a evolução da escalada do crime na capital fluminense vai perceber imediatamente as principais referências da série, com personagens espelhando destinos - bons e ruins - de personalidades políticas do Rio de Janeiro ou mesmo tragédias sem resolução até os dias atuais, por conta do mando e desmando de quem realmente controla a "cidade maravilhosa" - e isso é o grande achado da série (e também seu calcanhar de Aquiles) pois, mais uma vez, vai atrair quem sabe do que se está falando mas pode soar como uma piada interna para quem não conhece o contexto.

O grande destaque dramático se dá mesmo com a atriz Roberta Rodrigues e sua Berenice - lembrando que o filme original foi responsável por sua estreia nas artes dramáticas -, que cresce ao longo da trama e tem as melhores falas, situações e estofo que o roteiro pode oferecer. Sim, sabe-se que sua personagem tem a missão de carregar a "bandeira" dos direitos humanos para pessoas do local onde mora (e que antes eram defendidos por outro personagem) mas, mesmo com todo "discurso inflamado", a atriz consegue "subir o nível" do que pode parecer uma mera "panfletagem partidária" - tem alguma, sim, mas menos do que se imagina.


Outro destaque positivo vai para Luellem de Castro, que interpreta Leka (filha de Wilson "Buscapé" e que se apresenta como cantora de "funk pesadão", buscando um futuro artístico, para algum desgosto do pai). A atriz se destaca mais por conta de seu carisma espontâneo do que necessariamente da importância do que sua personagem na trama - mas vale frisar que a cena em que entoa a letra de um antigo funk durante uma passeata que era para ser silenciosa foi, talvez, "o" grande momento emotivo da série, mostrando que a atriz consegue transitar bem em momentos mais leves e descontraídos como em situações que exigem mais dramaticidade. Com um texto melhor e mais para fazer do que servir de algum conflito com o personagem de Alexandre Rodrigues (ou como par romântico do policial que pode ou não ser filho de um importante personagem do filme original), pode ter mais serventia do que ser a cantora e compositora de um jingle político.

A trama brilha mesmo quando se foca em pequenos momentos que são mais interessantes do que o todo, como o dilema do personagem ZeroOnze (corretamente defendido por Rafael Losso), um aliado da milícia que cometeu um erro no passado e acabou sendo responsável por levar um religioso para o mundo da bandidagem. É aquela percepção de que o ordinário e perfeitamente comum (mas não menos aterrador) sobrepõe o extraordinário.


A participação especial de Marcos Palmeira, por exemplo, é talvez a mais prenunciada que seu personagem sairá logo da trama, por conta (novamente) das decisões erradas de seu personagem (e de um roteiro muito mal estruturado). Outro prejudicado pelo roteiro é o ator Demétrio Nascimento Alves, que interpreta PQD, um ex-militar casado com Berenice e que acaba "abraçando a causa" de um dos lados do tráfico pelo que ele acha ser "melhor para a comunidade". Apesar de sua personagem se assemelhar bastante com Mané Galinha (interpretado por Seu Jorge no filme "Cidade de Deus") - tanto em intenção quanto em escopo e estofo -, o pouco que lhe destina a série faz com que tudo se desenhe para que tenha mais destaque da próxima vez que for visto.

O restante do gigantesco elenco ou está operacional ou exagerado. Um exemplo claro disso é o núcleo "político", com personagens beirando ao que seria feito em "A Praça É Nossa" ou como o Bradock de Thiago Martins, que parece tão perdido quanto o que o roteiro pede para sua personagem, não sabendo passar a dubiedade de objetivos que a confusa trama pede, indo para o lado mais fácil de qualquer vilão folhetinesco: ficar à beira da loucura (com direito à citação visual de "O Poderoso Chefão" e tudo). Aliás, o roteiro é tão desleixado que começa numa situação de perigo para Buscapé, volta no tempo para explicar como ele chegou àquela situação e não volta para mostrar o que diabos estava acontecendo ali...

(Mas lembre-se que "eles não tinham uma premissa muito bem definida", certo? Pois é...)


Na parte técnica, vale destacar a excelente direção de fotografia, edição e coreografia de cenas de tiroteio, fazendo com que a série tenha mais "cara" de um derivado de "Tropa de Elite" do que de "Cidade de Deus" (que, em breve, retorna aos cinemas) - mas, nesse caso, esse é um ponto bem positivo.

A primeira temporada de "Cidade de Deus - A Luta Não Para" estabelece diversos movimentos errados no tabuleiro da dramaturgia mas, em poucos momentos, mostra a que veio. Com um pouquinho de menos invencionice, mais pesquisa e personagens melhores estruturados, pode ser que a segunda temporada (já confirmada) funcione pois todas as pautas temáticas apresentadas são muito importantes e, mesmo que a série se passe em 2002, pouco (ou quase nada) mudou no Brasil de lá pra cá. Mas falta coesão narrativa e um pouco mais de equilíbrio ao que será apresentado. Para quem é fã do filme original, assista com baixa expectativa e tire suas próprias conclusões.




Kal J. Moon mora em periferia desde que nasceu e desafia o mundo sem sair de casa...

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