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CRÍTICA [CINEMA] | "Pequenas Coisas Como Estas", por Kal J. Moon

Dirigido por Tim Mielants, estrelado pelo vencedor do Oscar Cillian Murphy e por nomes como Emily Watson, Mark McKenna, Patrick Ryan, Helen Behan e Ian O'Reilly, o filme "Pequenas Coisas Como Estas" se apresenta como uma espécie de quebra-cabeças que requer silêncio e concentração para ver que imagem vai se formar...


"Maus obreiros"
Certa feita, num curso de locução em que este escriba esteve matriculado, uma cantora e colega de classe falou, no meio de uma conversa, que havia estudado em colégio de freiras no passado e que, atualmente, quando vê uma dessas "esposas do Senhor" no meio da rua, faz questão de atravessar em direção à outra calçada - disse isso seguido de um "O quêêêê...?!" (é um jeito peculiar de cariocas de dizerem que algo é bem óbvio mas sem explicar o que tal obviedade significaria).

Veja bem: "sororidade" é um termo bem recente na História. A primeira vez que foi registrado em língua portuguesa deu-se em idos dos anos 1990, em artigos acadêmicos assinados pela brasileira Lia Zanotto Machado. Mas precisar sua origem no mundo ainda é difuso e contraditório em muitos aspectos. E o "sentimento de irmandade, empatia, solidariedade e união entre as mulheres" era algo bem ignorado pela maioria das pessoas durante a "década perdida". E é nessa tecla falha que o filme "Pequenas Coisas Como Estas" insiste em tocar, ainda que soe quase inaudível à princípio...

Na trama - livremente baseada no homônimo livro de Claire Keegan -, em 1985, numa pequena cidade irlandesa durante as semanas que antecedem o Natal, um comerciante de carvão e pai dedicado se surpreende com uma suspeita de maus tratos à moças em um convento local. E isso traz lembranças de alguns problemas de seu passado que remetem à sua própria infância...

A direção de Tim Mielants (de séries como "Peaky Blinders" e do obscuro filme "Caminhos da Sobrevivência") segue uma narrativa bem minimalista, apoiada pelos silêncios que dizem mais do que palavras - o que é tanto um achado quanto um problema, uma vez que, em algumas cenas, esse tipo de narrativa possa causar algum tipo de confusão para quem estiver assistindo sem muita atenção.


Aliás, esse é o tipo de filme que não dá pra assistir segurando um celular, por exemplo, pois existe a possibilidade de perder algum detalhe importante da história, mérito também do criterioso roteiro adaptado por Enda Walsh (indicada ao prêmio BAFTA pelo desconhecido filme "Fome"), que traz, de forma bem sutil, os horrores velados, vaticinados pelos próprios habitantes da cidade, em nome da fé (e da hipocrisia) lembra, vagamente, o que é feito em "The Handmaid's Tale"...

(de forma inusitada, a água é utilizada em cena com diversos propósitos narrativos: o personagem de Cillian Murphy aparece constantemente lavando suas mãos e esfregando-as com uma escova para retirar o resíduo de carvão - preparo para o descanso; na infância, quando ele sofre uma decepção, enfia a mão num tonel de água gelada - "balde de água fria"; e, no convento, as poucas moças que aparecem, estão ou envolvidas na lavanderia ou esfregando o chão - punição, trabalho forçado)

Curiosamente, o grande destaque do filme é sua edição e captação de som capitaneada por Hugh Fox (do recente "Abigail") e Bert Aerts (da obscura animação "Nayola: Em Busca de Minha Ancestralidade") pois, uma vez que existe muito cenário de amplo espaço (como os cômodos do convento), existe muita ambiência de som que poderia "escapar" durante o período de mixagem. Mas, aqui, a audiência consegue ouvir cada crepitar de lenha queimando na lareira, passos dados por mulheres usando tamancos em pisos de madeira, o puxar de uma gaveta à esquerda ou o contar de cédulas à direita.

Cillian Murphy (vencedor do Oscar por sua performance em "Oppenheimer") está à vontade na pele do carvoeiro, pai de muitas meninas e que não sabe o que fazer quando vê uma possível injustiça sendo cometida por freiras num convento em que presta serviço de venda de lenha, carvão e derivados. Seu conflito com o próprio passado - e os maus tratos por que passou - são praticamente palpáveis.


O que o ator faz em cena não é somente "cara" de sofrimento e dor. Ele "finge sentir o que deveras sente", como diria o poeta. O personagem se compadece e sente empatia por algo que não lhe diz respeito, tentando ajudar de alguma(s) forma(s) - dividido entre o que é prudente de se fazer e o que precisa ser feito. Porém, por ele ter passado por algo parecido no passado, não seria esse ato considerado "sororidade" em algum nível...? Fica a questão.

Eileen Walsh (de "Em Nome de Deus", que trata do mesmo tema de "Pequenas Coisas Como Estas") tem pouco tempo em cena mas diz uma das frases mais chocantes da obra, quando a personagem pede para o marido "deixar para lá" (assim como outras mulheres da trama) porque "tem meninas que aprontam" e "se não fossem essas 'irmãs' [freiras], sabe-se lá o que seriam delas". 

Outro destaque positivo é para a sempre correta e inspirada Emily Watson (da série "Duna - A Profecia"), que traz toda a falsa austeridade disciplinar de uma madre superiora, passando a impressão que sabe mais do que o que é mostrado em cena. Fala pouco, bem baixo, não faz movimentos estravagantes, move-se com altivez porém de forma decidida pois sabe bem seus objetivos. A cena do cartão de Natal é chocante justamente por dizer muito por meio de subtexto - uma vez que o que está sendo dito é o exato oposto do que é mostrado.

Por último, Zara Devlin (de "A Sombra do Mal") é a vítima de maus tratos encontrada pelo protagonista, que precisa decidir o que fazer. Descobre-se, aos poucos, o que está acontecendo com a personagem e a atriz transmite muito com o olhar, igualmente com poucos gestos, sua condição beirando a fatalidade - inicialmente, de forma bem enérgica, mas, com a rodagem, diminuindo fisicalidade mas esbanjando um triste estado de ser...


A direção de fotografia de Frank van den Eeden (do recente "Close") passa toda a frieza dos eventos, assim como da cidade em que se passa a história. É um filme que se assiste "pelos cantos", sem tomadas óbvias. As ações não se dão no centro da tela, geralmente à esquerda ou à direita - mas de forma bem sutil. O uso de iluminação natural acontece em diversas tomadas, trazendo um distanciamento orgânico para, quando os personagens se conectam - ou se repelem -, faz com que a audiência tenha a recompensa necessária através do que é mostrado (e do que não é).

Dito isso, vale destacar também a edição capitaneada por Alain Dessauvage (também de "Close"), que inicia com cortes abruptos ao mostrar a rotina excruciante de trabalho do protagonista para cenas com a família mais prolongadas, porém sem gerar estranheza durante a exibição.

"Pequenas Coisas Como Estas" é o tipo de filme que traz um assunto bem espinhoso - e livremente baseado num caso real, o das "Magdalene Laundries", instituições comandadas pela Igreja Católica desde o século XVIII e que "abrigava" as chamadas ~"mulheres perdidas" (que as famílias enviavam à instituição por terem feito sexo antes do casamento ou algum outro motivo esdrúxulo e viravam "propriedade" da Santa Igreja, trabalhando forçosamente durante a clausura), resultado num escândalo quando foi descoberto, em 1993, mais de 150 túmulos de mulheres enterrados numa dessas "lavanderias" na Irlanda, um crime encoberto desde 1922.

Além de estritamente necessário para os confusos tempos atuais, traz à baila, novamente, uma história que não deve ser esquecida em momento algum. Assista, reflita, chore, indigne-se e não deixe acontecer novamente - nem aos seus e nem a ninguém. 


Kal J. Moon é pai de menina, não entende livros intitulados com nomes de personagens, sorriu quando viu um trecho da animação "Danger Mouse" na tevê da família do protagonista e acha que gansos não são criaturas de Deus...

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