Dirigido por J.C. Feyer, "O Rastro" é um filme de suspense e terror brasileiro que aponta para o sobrenatural mas aborda temas bem próximos da realidade, levando o espectador a conhecer a verdadeira face do medo nos dias atuais.

A face da maldade
Quando criança, durante uma época de festas juninas, eu fiquei na casa de conhecidos de minha mãe por não curtir muito as festividades - apesar de gostar das guloseimas. Como também estava em período de férias escolares, era permitido dormir um pouco mais tarde que o horário normal. Porém, semelhante aos dias de hoje, não havia uma boa programação noturna na TV, ao passo que me emprestaram histórias em quadrinhos diversas de um de seus parentes que estava viajando. E eram gibis de... terror!

Foi nessa época que conheci - e me apaixonei - pelo trabalho de feras da ilustração mundial como Nico Rosso, Júlio Shimamoto, Mozart Couto, Eugêno Collonese, Bernie Wrightson e Frank Miller (sim, ele já fez histórias de terror!) nas revistas "Drácula", "Calafrio", "Cripta do Terror", "Histórias Reais de Lobisomem", "Shock"... Minha curiosidade por essas histórias também ficava por conta de muitas dessas revistas serem ilustradas por brasileiros, o que dava aquele orgulho e pensar "pô, dá pra fazer bonito aqui também!".

E, mesmo gostando desse universo amoral porém sempre com um quê de justiça divina no final de suas histórias, foi com tristeza que envelheci e não encontrei pares dessas passagens em filmes atuais de terror - com a honrosa exceção para o bacana "Mama", que bebe das mesmas fontes. Todas as histórias mais recentes eram muito parecidas, com personagens rasos, fotografia ruim, histeria despropositada e resultado nada assustador. Quer dizer, isso até chegarmos a 2017 com o filme "O Rastro".

Estrelado por Rafael Cardoso, Leandra Leal, Claudia Abreu, Felipe Camargo, Jonas Bloch e participação especial do saudoso Domingos Montagner, "O Rastro" conta a história de João (Rafael Cardoso), médico escolhido para coordenar a remoção de pacientes de um antigo hospital prestes a ser desativado. Na noite da transferência, uma das pacientes - uma menina de 10 anos de idade - desaparece sem deixar vestígios. Quanto mais João se aproxima da verdade, mais ele mergulha em um universo obscuro, que nunca deveria ser revelado.

O roteiro escrito pela dupla Beatriz Manela e André Pereira mergulha fundo num terror sem floreios, sem meias-palavras, sem concessões. O discurso conversa com a cartilha clássica do horror ancestral, aquele que reza que locais podem absorver a maldade das pessoas, aquele que insiste em não duvidar do macabro, aquele que acredita que se algo pode dar errado, VAI DAR ERRADO. A melhor parte de "O Rastro" é que sua trama não segue o esquema de ~"monstro da vez", mesmo que, a princípio, pareça exatamente o contrário. Mas as aparências enganam porque mentir é fácil demais. Como não gostar de um roteiro que mostra que o medo e as trevas são apenas consequências dos atos dos seres humanos?

Também é curioso como a trama vai se desenrolando com a ajuda das personagens femininas, onde cada uma delas é parte intrínseca do quebra-cabeças e não um mero adereço ou alguém que não será lembrado ao final da exibição.

(Contar mais do que isso seria revelar um tremendo spoiler mas basta prestar atenção para entender o quebra-cabeça montado pela produção, ok?)

O grande destaque de "O Rastro" - além da criativa história - é o trabalho criterioso e bem cuidado da direção de fotografia comandada por Gustavo Hadba (de "Irmã Dulce" e do vindouro "Motorrad"), que emula - com eficiência admirável - a atmosfera dúbia e catastrófica daqueles gibis de terror que falei no início dessa crítica. Chega a ser impressionante para quem conhece esse tipo de trabalho ver que TODOS os enquadramentos - além de belamente executados - poderiam muito bem ser desenhados, com ângulos inusitados - e uma paleta de cores em tons de verde, azul e cinza -, muito diferente do que costuma ser defendido no cinema brasileiro. Dificilmente veremos outro filme brasileiro com uma fotografia tão criativa em 2017 quanto neste filme.

Apesar de todos os atores e atrizes estarem bem o suficiente para que se acredite nesta trama fantástica - algo tão complicado de se ver no grande circuito feito por brasileiros -, não é uma história para grandes atuações, nem grandes construções de personagens.

(OK, abro exceção para Leandra Leal, que caracterizou uma personagem crível e representou uma perfeita "scream queen", sem dever NADA a nomes estrangeiros. Haja pulmão!)


Porém, o principal 'plot twist' do filme se dá com acontecimentos que vão se ligando ao cotidiano, algo que vemos todos os dias na TV e que não seria nada impossível de presenciar nas páginas do jornal ou no noticiário vespertino. E isso toma outras proporções, ainda mais sombrias, quando temos Domingos Montagner no elenco...

O único porém dá-se justamente numa das decisões de roteiro, com um início um pouco truncado - imagino que proposital - e em parte de seu desfecho, onde vemos uma das personagens fazer algo virtualmente impossível diante dos acontecimentos. Mas, vamos ser sinceros: já vimos coisa muito pior em filme gringo - e relevamos! Acredite: não será um mero detalhe que vai estragar sua experiência.

Assista no cinema durante a semana de estreia. Se gostar, recomende aos amigos. Não porque você quer dar uma força - já passamos dessa fase, né? - mas sim porque é um bom filme, é bem feito e merece ser reconhecido como um produto em perfeitas condições de consumo. Acredito piamente que "O Rastro" será para o terror o que "Carlota Joaquina" foi para o cinema brasileiro atual: abrirá portas. Ou melhor: vai escancará-las com urros e pontapés!



Kal J. Moon não tem medo do escuro mas aquelas paredes não param de gemer... Brrr!