Dirigido por Pete Docter e Kemp Powers, "Soul" é a nova animação Disney-Pixar (que chega direto para streaming por conta da pandemia em 2020) e, apesar da trama simples e objetiva, parece propositalmente direcionada mais para os adultos do que para o público infantil.


Improvisando muito solto

À primeira vista, com seu visual rebuscado (para o mundo terrestre) e fofo (para o mundo espiritual), "Soul" lembra qualquer longa animado da Pixar como "Up - Altas Aventuras" ou "DivertidaMente" - este último, não por acaso, também é dirigido por Pete Docter. As semelhanças talvez não parem por aí...

Na trama, Joe (dublado originalmente por Jamie Foxx e pelo veterano Jorge Lucas na versão brasileira)  é um professor de música frustrado pois o que queria mesmo era tocar piano numa banda de jazz. Quando é promovido a professor titular e, no mesmo dia, aparece uma chance para mostrar seus dotes artísticos numa banda de um ex-aluno (capitaneado por uma promissora saxofonista - Angela Bassett no original, e a cantora Luciana Mello no Brasil), Joe cai num bueiro sem tampa e "morre". No "além-vida", ao sair do "caminho da luz", conhece 22 (voz de Tina Fey no original e Carol Valença no Brasil), uma alma que está na "escola da vida" há séculos (mesmo) mas não quer ir à Terra pois não tem a menor vontade de viver. Joe tenta convencê-la a ajudá-lo a voltar para seu corpo enquanto mostra porque viver é algo entre o curriqueiro e o maravilhoso (existe uma reviravolta nesse processo mas contar seria um tremendo spoiler).

Falando assim, por essa trama acima, até parece aqueles livros de auto-ajuda escritos por algum guia espiritual que prega a abnegação material (mas é podre de rico...) com o intuito de aceitarmos que a vida é do jeito que é (pagar boletos, se aborrecer e dormir um pouco - de vez em quando dá-se umas risadas mas é só isso mesmo). Afinal, "a vida é o que acontece enquanto você está ocupado fazendo outros planos", como já disse um certo rapaz besouro... 

Mas a verdade é que "Soul" é aquela história batida de que o mestre (ou professor) tem muito a aprender com o aluno rebelde que parece não se encaixar nos esquemas pré-montados dos atuais currículos da educação (sejam quais forem). E, aí, o filme em si acaba se perdendo um pouco.


São diversas idas e vindas Terra-Além-Vida (sem muito a acrescentar na trama além de "o que será que está acontecendo lá?") que temos a impressão de ver um remake de "DivertidaMente". Algumas situações se repetem só para colocar ainda mais dificuldades no caminho do protagonista para que ele não alcance seu objetivo "tão fácil" (e olhe que ele está "vivendo" um dia "daqueles"). 

Os nomes de alguns personagens são um achado: Joe é só mais um na vida, alguém que não deu muita sorte, como muitos de nós. 22 é doida de pedra (engraçado que 22, no Brasil, é gíria para uma pessoa maluca e isso nem precisou ser adaptado). E todos os orientadores do além-vida chamam-se "" (não importa se seres masculinos ou femininos - no original era "Jerry"). Curiosamente, quando Joe se pergunta se todo mundo ali se chama , soa engraçado no Brasil por ele se chamar Joe, que seria o equivalente a em inglês.

Além disso, é LINDO ver tantos personagens afrodescendentes numa grande animação, sem trejeitos exagerados, agindo como eu e você - e não como estereótipos ambulantes (repare na cena da barbearia ou na primeira vez que Joe toca piano com a banda de jazz). Acompanharia uma série animada com esses personagens sem nenhum problema...

A trilha sonora se destaca pelos arranjos e belíssimas composições de jazz criadas por Jon Batiste, além da trilha instrumental (quase "new age") da dupla Trent Reznor e Atticus Ross. Embora pareça uma mistura indigesta, é bem funcional e orgânica (dá para ouvir em separado quando terminar a projeção).

Apesar dos problemas apontados, o filme até agrada. Provavelmente mais a adultos, que pensarão em como estão levando suas vidas numa "eterna" obsessão pelo sucesso financeiro-afetivo-etc e, talvez, repensem em como mudar suas rotinas pois "a vida é um sopro".

O roteiro escrito por Docter, Powers e Mike Jones tem alguns furos mas nada que estrague a experiência. Entretém, possui uma importante mensagem sobre como todos somos mestres para alguém e isso pode influenciar positiva ou negativamente, além de provocar algumas risadas mas o foco principal é a reflexão. E por conta disso, talvez tenha sido bem acertada a decisão de não lançar esse longa nos cinemas em ano de pandemia mas sim direto no streaming pois essa trama não conversa com um público mais amplo. Definitivamente não é um filme para toda a família.


E o final ~"aberto" (e abrupto - como a vida, aliás -, com jeito de "peraí, vai acabar ASSIM? Eu quero saber o que aconteceu com...") deve virar uma das polêmicas entre cinéfilos para decidirem se o filme é bom ou não...

Com visual impressionante e realista, cheio de inspirações cubistas (o visual de diversos personagens no "além-vida" lembra MUITO o que foi feito anos atrás em "Penadinho - Vida", história em quadrinhos dos brasileiros Paulo Crumbim e Cristina Eiko), "Soul" pode ser aquela história para servir de reflexão, um profundo respiro num ano atípico que não deu trégua para ninguém. Mas não deve agradar a todo mundo. Bonitinho, legalzinho e só.




Kal J. Moon vive a vida "jazzando" por aí... Shubidu-bau-bau...