Escrito por David Koepp, dirigido por Steven Soderbergh e estrelado por Zoë Kravitz, "Kimi - Alguém Está Escutando" é uma espécie de versão genérica do clássico "Janela Indiscreta", só que sem o mesmo impacto...


Sororidade para iniciantes
"E se a gente fizesse uma atualização de 'Janela Indiscreta' para uma geração que não aguenta assistir filmes longos...? Colocamos uns lances sérios e até um tanto profundos aqui e ali, além de luta, socos e pontapés, mas nada sem muito desenvolvimento... Que tal?".

Não, eu não estava na sala onde tiveram a "ideia" do roteiro de "Kimi - Alguém Está Escutando", mas minha imaginação me permite divagar a esse respeito e imagino que um orçamento restrito e pouco tempo de rodagem tenham sido fatores fundamentais para que a realização desse filme tenha se dado dessa forma tão canhestra - pelo menos para algo vindo de um cineasta tão tarimbado quanto Soderbergh.

Na trama, uma jovem agorafóbica com uma tragédia pessoal séria trabalha em casa como analisadora de áudios do gadget Kimi - uma concorrente de assistentes virtuais como Siri e Alexa - e descobre possíveis provas de um crime contra uma das usuárias do aplicativo e decide enfrentar meio mundo para que a justiça seja feita. Nem que para isso precise encarar seu maior medo: sair de casa e ter que interagir com os mais diferentes tipos de pessoas...

Mesmo que um tanto inocente, digna de um exercício de imaginação de quem está começando a escrever roteiros num curso preparatório, a ideia está longe de ser ruim. Algo simples não deve ser imediatamente descartado por conta de haver poucos elementos a serem trabalhados - deve-se, claro, elaborar a estrutura para que forma e conteúdo convirjam num produto digno de ser apreciado pela maior quantidade de pessoas. E talvez esse seja exatamente o problema desse filme.

Vivemos em uma sociedade (ha!) em que a mensagem transmitida deve ter a menor quantidade de obstáculos para que a audiência absorva seu conteúdo de forma mais imediata. A personagem de Kravitz chama-se Angela (uma versão feminina para "anjo", em inglês, se pararmos para pensar direitinho) e mesmo possuindo um histórico problemático que a impede de sair de casa, decide que o que aconteceu a ela própria (estupro) não deveria acontecer a qualquer mulher novamente (um lance meio Batman, né?) - a tal sororidade, colocar-se no lugar de outrem e compadecer-se a ponto de fazer algo importante a esse respeito além de se lamentar e dizer que entende-se pelo que a vítima está passando.

As cenas contextualizando os sintomas de aflição e ansiedade são bem interpretados pela atriz - nada que a faça concorrer a prêmios e nem tão inédito assim mas crível o suficiente para que o público entenda o que pode ocorrer em caso da protagonista tentar sair de casa. Porém, quando se toma essa decisão em prol da sororidade descrita acima, a personagem tira forças sabe-se lá de onde e, mesmo com alguma dificuldade motora e a constante paranóia, tais sintomas não voltam a se manifestar -  o que, por si só, é um erro de roteiro. A impressão que dá é que a personagem tem medo de estar em ambientes a céu aberto, mas escritórios... tá tranquilo?! Só para ter uma ideia do tamanho da incongruência: a personagem se esgueira pelos cantos enquanto está na rua, andando toda encolhida para evitar contato com as pessoas mas quando está diante de sua superiora num escritório, retira a máscara que usava por conta do distanciamento social...


O inacreditável roteiro do veterano David Koepp - de clássicos do cinema moderno como "Jurassic Park", "Missão: Impossível" e o primeiro "Homem-Aranha" - parece ter sido escrito em menos de duas horas, incluindo diálogos vergonhosos e nada verdadeiros para uma personagem tão inteligente. O terço final da trama transforma o arremedo de Hitchcock em uma versão genérica de John Wick sem mais nem porquê. Assim, do nada, a personagem passa de doente passiva a badass motherf*cker com direito a escolher matar TODO MUNDO que entre em seu caminho - e isso tudo após levar um tapa justamente na parte da mandíbula onde estava com... dor de dente. Mencionar que o bando de capangas que a sequestra é, talvez, a mais atrapalhada da história do cinema... Não dá para entender se há alguma mensagem nisso - se as mulheres se esforçarem, podem fazer qualquer coisa, talvez? - ou se é só mais um furo no roteiro (ainda mais quando se deixa claro que "os melhores e mais caros profissionais" foram contratados para dar conta do serviço).

Mas nem tudo é uma bomba fedorenta em "Kimi - Alguém Está Escutando" pois a direção de fotografia comandada pelo próprio Soderbergh - provando a teoria de que esse é um filme com recursos limitadíssimos, tendo em vista a quantidade de cenas filmadas in loco na maior quantidade possível de cenários reais - utiliza ângulos bem inusitados, tornando essa jornada improvável um pouco menos indigesta. Já a trilha sonora composta por Cliff Martinez (de filmes cults como "Drive" e "Demônio de Neon") é efetiva, embora não haja nada de muito elaborado.

Mesmo assim, Koepp e Soderbergh ainda se permitem algum simbolismo visual durante sua narrativa pois a protagonista pinta o cabelo de azul enquanto está na defensiva, age de forma roboticamente em seu relacionamento quase somente sexual e age proativamente - "blue" significa "azul" em inglês e também pode significar "tristeza", simbolizando o estado de espírito da personagem (mas também pode indicar que ela está agindo como o que se espera que um homem aja, por conta da cor geralmente associada ao gênero masculino). Isso também pode querer dizer que a personagem precisa agir como um homem agiria para poder vencer não só seus medos como também o que estiver à sua frente para não morrer no processo. Para provar essa teoria, ao final a personagem usa seu cabelo cor de rosa e consegue sair de casa normalmente -  o que denota que ela pode agir como mulher novamente, sem resquícios de seu trauma. Embora pobre, ainda assim é mais do que se espera de um filme desse tipo de de uma duração tão curta (menos de uma hora e meia).

"Kimi - Alguém Está Escutando" é o tipo de filme perfeito para se assistir numa noite de sábado enquanto se come uma pizza e aguarda para assistir seu reality show favorito ao lado da família. Mas também igualmente esquecível - apesar de pincelar, mesmo que bem superficialmente, em temas importantíssimos.




Quando chamam por Kal J. Moon, ele não responde nada pois não fala com estranhos...


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