Escrito, produzido e dirigido por Cord Jefferson, estrelado por Jeffrey Wright, John Ortiz e Sterling K. Brown (com participação especial de Issa Rae, Adam Brody, Tracee Ellis RossLeslie Uggams), "Ficção Americana" concorre a 4 Oscars - incluindo Melhor Filme - detalhando como funciona o racismo estrutural nos Estados Unidos... e talvez no mundo inteiro. 


"Pra branquinho aplaudir"
"O racismo estrutural e institucional - aquele que vem das instituições -, (...) diz que (...) todo preto é igual", disse Flávia Oliveira, jornalista brasileira especializada em Economia, em recente entrevista no podcast "Mano a Mano". Essa frase resume bem a experiência cinematográfica do roteiro escrito por Cord Jefferson, livremente baseado no livro de meta-ficção "Erasure - A Novel" (2011), de Percival Everett. Livro este que, provavelmente, deu trabalho para adaptar, uma vez que não trata-se de uma narrativa linear e tradicional mas diversos excertos como capítulos falsos de livro, cartas, reportagens, bilhetes que, no conjunto, formam a curiosa história contada em "Ficção Americana".

Na trama, um frustrado e nada famoso romancista decide escrever um livro "negro" sob pseudônimo como forma de piada e protesto mas, surpreendentemente, a obra faz um tremendo sucesso. Enquanto luta contra seus ideais de ganhar muito dinheiro com textos mal-escritos, ainda precisa lidar com uma mãe idosa com sintomas de Alzheimer - com problemas financeiros para cuidar dela - e um irmão que se descobriu homossexual recentemente mas está cometendo alguns excessos no processo, além de uma nova namorada que adorou o livro escrito sob pseudônimo...


Cinéfilos mais atentos podem perceber que a trama de "Ficção Americana" assemelha-se bastante à do obscuro filme "A Hora do Show" (de 2000 - escrito e dirigido por Spike Lee) com algumas pitadas do recente "Não Olhe Para Cima" (de 2021, escrito e dirigido por Adam McKay) - porém, voltado à narrativa afrodescendente.

Entretanto, não dá pra chamar este filme de uma comédia na maior acepção da palavra. Talvez "dramédia" seja mais adequado, uma vez que o sofrimento do protagonista é o deleite da audiência. Mas os momentos risíveis são raros e precisos. O debate e a reflexão sobre como a indústria da cultura apodera-se de repetitivos estigmas para propagar estereótipos é o que realmente chama a atenção nesta pequena jornada de infelicidade de um escritor que quer sair da caixinha mas acaba trancado em sua própria armadilha...


O roteiro de Cord Jefferson - que levou uma indicação ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado - deixa bem claro que tem algo "errado" nesta narrativa - que reverbera na reviravolta final - mas, independente disso, as situações apresentadas são bem plausíveis e totalmente possíveis, dadas as devidas proporções, como editores brancos aprovando um texto medíocre somente por mostrar negros em situação de periferia, trafico de entorpecentes ou dificuldades financeiras pois é o tipo de livro "que vende". Ou a TV transmitindo a programação especial do dia da consciência negra, onde são exibidos apenas filmes ou séries sobre escravidão ou pobreza e sofrimento. Só existe um tipo de narrativa afrodescendente que possa ser realmente comercial? A quem interessa que as agruras de negros e negras sejam bem sucedidas enquanto produto, seja livro, filme ou série de TV?

A direção de Cord Jefferson - egresso da TV, geralmente como roteirista e produtor de séries como "The Good Place" e "Watchmen", em sua estreia como diretor de cinema - privilegia o absurdo como ponto de partida mas sob um ponto de vista mais "clássico", com seu protagonista achando cada vez mais impossível que nada que ele faça para "boicotar" o novo e indesejado livro possa impedi-lo de ganhar ainda mais dinheiro por um trabalho que ele despreza. Com isso, voltando ao "algo errado" do parágrafo anterior, pode até parecer que o elenco não é esforçado o suficiente - porém, a estratégia é proposital. Sim, existem momentos dignamente dramáticos ou de algum contraste dinâmico em cena, mas o objetivo é tudo parecer "estável", apostando no seguro, até que haja algum ponto de ruptura, que pode gerar comicidade ou simplesmente o choque de ideias.


O destaque principal do elenco é mesmo Jeffrey Wright - indicado ao Oscar de Melhor Ator pelo papel -, que entrega um protagonista fora do padrão hollywoodiano, mais contido, nem sempre simpático e, pra falar a verdade, até um pouco desprezível e sem nem um pouco de carisma. Mas Wright desvela sua performance de forma quase apática e um tanto patética para que a situação ao seu redor se sobressaia justamente por sua postura classuda na maioria das vezes. Existe, óbvio, algum humor - principalmente quando contracena com John Ortiz, que interpreta seu agente literário e profere alguns diálogos impagáveis sobre o que o mercado editorial espera de alguns escritores (a metáfora sobre whiskey, além de perfeita, é um ótimo product placement).

Quem também se destaca é Leslie Uggams, que interpreta a mãe doente do protagonista e transmite, com bastante sensibilidade, como pacientes de Alzheimer geralmente se comportam (de forma imprevisível, ora moribundos, ora agitados). O momento mais tocante do filme é justamente protagonizada por ela e Sterling K. Brown, que mesmo sendo um inevitável alívio cômico - e que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante - também se equilibra bem na dramaturgia.


Outros nomes do elenco tem participação menor porém marcante como Issa Rae (que traz uma personagem que é uma verdadeira antítese e quase caricatura do que a atriz, roteirista e produtora geralmente faz em seus trabalhos - e profere a frase mais importante do roteiro, mostrando que não existe literatura ruim mas tipos diferentes de público), Tracee Ellis Ross (que tem poucos momentos de tela no início da trama e é responsável pela primeira reviravolta do roteiro), Adam Brody (fazendo sua segunda participação especial num filme indicado ao Oscar - a primeira foi em "Bela Vingança", de 2020 - que não difere muito do que seria se Seth Cohen - seu personagem no seriado "O.C. - Um Estranho no Paraíso" - seguisse a carreira no cinema como produtor ou diretor) e Erika Alexander (a namorada que "atura" o protagonista e diz-lhe umas boas verdades após uma discussão).

A trilha sonora original composta por Laura Karpman (do recente "As Marvels") evoca justamente esse mundo "sofisticado" que o protagonista passa a transitar por conta de seu pseudônimo (e, não à toa, traz muitas canções de inspiração no jazz mais clássico, uma vez que o personagem principal chama-se Thelonious Ellison mas é chamado na maioria das vezes de 'Monk' - assim como o famoso compositor).


A direção de fotografia de Cristina Dunlap (do também recente "Cha Cha Real Smooth - O Próximo Passo") é composta de muitos planos "contemplativos", usando o "desenho de luz" para evocar o pensamento do protagonista ou de outros personagens, trazendo bastante "amarelo" para ambientes habitados por escritores ou editores e "cinza" para quando o personagem está em seu "mundo" particular, resultando em belas composições visuais.

"Ficção Americana" é o ~"anti-filme negro" meticulosamente formatado como obra perfeita para atrair a atenção das premiações. Provavelmente, não ganhará todos os Oscars que merece por conta da disputa acirrada este ano - aposte em Melhor Roteiro Adaptado - mas é um bom entretenimento a respeito de algo tão óbvio que é necessário fazer um filme para que a indústria perceba o que há de errado. Para ver, refletir e questionar...


Kal J. Moon adora jazz, escreve críticas de cinema num prestigiado site de cultura POP e mal pode esperar para escrever seu primeiro livro. Será um sucesso instantâneo...

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