Criado por Neil Gaiman, David S. Goyer e Allan Heinberg, estrelado por Tom Sturridge, Vivienne Acheampong, Boyd Holbrook, Patton Oswalt, Jenna Coleman, David Thewlis, Gwendoline Christie, Stephen Fry, Kirby Howell-Baptiste, Charles Dance, Vanesu Samunyai, Mason Alexander Park e grande elenco, "The Sandman" é a aguardada adaptação live-action dos quadrinhos escritos por Gaiman. Mas a série vale a pena ou dá sono? Bem...
A trajetora da longeva série em quadrinhos de Sandman para se transformar num produto audiovisual é digna de um documentário - talvez estejam providenciando, vai saber. Existe um obscuro filme em VHS chamado "Sandman - O Mestre dos Sonhos" (que no Brasil saiu com logotipo oficial da DC e tudo em 1993) que tentou se aproveitar do fenômeno que os quadrinhos geraram desde 1987.
E tentativas não faltaram para que o Rei do Sonhar deixasse de ser apenas uma espécie de delírio coletivo na mente de quem tinha o sonho de ver a criação máxima de Gaiman em carne e osso um dia. Mas cada projeto diferente ou cada rumor tinha como destino sua própria morte tempos depois. E nem mesmo atores apaixonados pelo projeto ou indiretas do próprio criador sobre quem era o desejo dele para viver Morpheus - em desespero de que uma das obras mais aclamadas e premiadas dos quadrinhos mundiais tivesse o mesmo destino que filmes adiados ou cancelados por motivos adversos - pareciam ter o poder de mudar o inevitável.
Essa sinopse acima não faz jus às histórias dessa primeira temporada, pois é uma adaptação de dois encadernados de Sandman (a primeira metade adapta "Prelúdios & Noturnos" e a segunda metade, "Casa de Bonecas"). Nada menos que dezesseis edições transformadas em dez episódios altamente interligados entre si, como não poderiam deixar de ser. E em matéria de adaptação, bem...
O principal problema do texto da série foi ter de "editar" o texto prolixo de Gaiman nos quadrinhos - sim, um problema e uma solução ao mesmo tempo. Calma, a questão aqui não é xingar ou depreciar o cultuado autor inglês mas - e isso somente quem leu as 75 edições de Sandman vai entender - Gaiman estava experimentando muito a linguagem da nona arte nos dois primeiros arcos narrativos. Ora tentava ir para o terror mas também se enveredava pelo caminho mais próximo da literatura de fantasia e, assim como Alan Moore, Grant Morrison e outros autores súditos da Rainha, tinha uma certa veneração pelo movimento literário chamado "gótico americano". "As primeiras edições saíram meio desajeitadas", declara Gaiman no posfácio do primeiro encadernado (e não dá pra discordar). E se os primeiros números dos quadrinhos de Sandman requerem uma certa dose extra de paciência, a série, mesmo cortando MUITA coisa, também carece de exercer a mesma virtude de Jó.
O primeiro episódio ("O Sono dos justos") é um bom começo, cria interesse e apresenta bem alguns personagens que terão maior importância mais a frente na primeira temporada - e alguns somente numa vindoura segunda temporada. O roteiro do próprio Neil Gaiman, David S. Goyer (de "Batman Begins") e Allan Heinberg (do primeiro "Mulher-Maravilha"), com participação de Vanessa Benton e Catherine Smyth-McMullen é um tanto expositivo, verdade, mas há de se lembrar que é um início de uma jornada bem incomum em matéria de narrativa nos quadrinhos e ainda mais quando se trata de um seriado. A direção de Mike Barker (de séries densas como "O Conto de Aia" e "Fargo") é competente e funcional, embora crie apenas curiosidade pelo que está por vir e nada além disso. O destaque no elenco, claro, é de Charles Dance - ou "o pai dos filhos da put@", como chamamos na redação - interpretando o dublê de bruxo que aprisiona Sandman quando na verdade queria aprisionar... a Morte.
O terceiro episódio ("Sonhe comigo") com roteiro de Jim Campolongo, novamente com direção de Jamie Childs traz a principal diferença entre gibi e série pois o personagem John Constantine está para ganhar um novo seriado pela mãos de J.J. Abrams e não foi liberado pela Warner Bros para fazer uma aparição neste episódio. A solução foi usar uma versão contemporânea de Johanna Constantine - que pertence ao lore do universo de Sandman nos quadrinhos desde o início - aqui interpretada por Jenna Coleman, que entrega uma boa atuação mas sente-se que é apenas funcional e não algo digno de nota - e olha que o roteiro deveria entregar um genuíno momento emotivo aqui, mas passar rasteiro como quem tem muita pressa de contar partes de uma história mas detém-se bastante tempo em momentos nada interessantes (não, a culpa não é da atriz). E também temos um vislumbre do maníaco John Dee (David Thewlis) e Coríntio (Boyd Holbrook) - falaremos de ambos mais para frente -, além da perfeita dublagem de Patton Oswalt como o corvo Matthew. Porém, novamente, sem medo de repetir frases, ainda é uma construção em andamento.
"Ela percebeu o grande problema das histórias"
Então chegamos ao quinto episódio ("Sem parar"), com roteiro de Ameni Rozsa e a última direção de Jamie Childs na série. Para quem costuma acompanhar seriados de poucos episódios, sempre têm-se a certeza de que os primeiros e os últimos episódios serão os melhores, para manter a audiência interessada como para que haja uma renovação de temporada futura. A preocupação em agradar a audiência que não conhece os quadrinhos originais passou e este episódio - que chegou a ganhar um curta-metragem feito por fãs que impressionou o próprio Gaiman - é a comida sólida para quem estava cansado de papinha narrativa. Se até nos quadrinhos temos uma arte bem melhor providenciada por Mike Dringenberg e Malcolm Jones III, aqui até a direção de fotografia de George Steel (de "Pinky Blinders") agrega um valor ao visual narrativo da série que andava bem sorumbática e simples demais para algo do nível de Sandman. O roteiro toma as devidas liberdades em relação ao gibi mas pode ser considerado uma boa adaptação de como um restaurante pode virar o microcosmo da sociedade egoísta em que vivemos - e que pode ter servido de inspiração para um filme brasileiro, se pararmos para pensar direitinho. O destaque no elenco do episódio é claramente para David Thewlis como o maníaco John Dee. Ainda que visualmente bem diferente de sua contraparte nos quadrinhos - ainda bem pois aquilo era bem bizarro, pra dizer o mínimo -, o ator inglês traz toda a perturbação e uma surpreendente calma inerente a quem acha que está no comando de uma situação cada vez mais fora do controle. A direção de Jamie Childs, dessa vez, atinge seu ápice na série, adaptando bem o que poderia ganhar, nas mãos erradas, um exagerado tom teatral - o que não foi o caso aqui. Sobre isso, nosso editor Marlo George (que não leu os quadrinhos) disse que "O quinto [episódio] é muito bem dirigido. Poderia ficar confuso, mas foi muito fød@".
Já a atriz Kirby Howell-Baptiste... Bem, digamos que apesar dela entregar a dramaticidade necessária para as cenas, não somente o figurino como a composição da personagem Morte estão erradas. Não chega a ser algo gritante como ocorre com Sanjeev Bhaskar e sua versão terrivelmente equivocada em matéria de tom de Caim. Mas a Morte ficou com uma abordagem meio fria demais, apenas operante e responsiva. Quem conhece a personagem sabe que há um potencial enorme para dramaticidade. Na segunda parte do episódio, o destaque vai para Ferdinand Kingsley como Hob Gadling, o homem que acha que morrer é um desperdício e "decide" que não partirá para a terra dos pés-juntos. o ator inglês capta muito bem o espírito dos quadrinhos e esta parte do roteiro praticamente replica o que estava no gibi, com pouquíssima adaptação. Curiosamente, as canções que aparecem no fim da penúltima cena são "She Drives Me Crazy" (Fine Young Canibals) e "Shattered Dreams" (Johnny Hates Jazz) é meio que um resumo dos quatro últimos episódios do seriado...
"Jogue no fogo, você não precisará mais"
Nos quatro últimos episódios de "The Sandman", a audiência consegue ver o tamanho da encrenca que a equipe de roteiro e direção teve de enfrentar. O "problema" é que a adaptação do arco "Prelúdios & Noturnos" havia terminado no sexto episódio e agora, oficialmente, tem literalmente quatro episódios para espremer e condensar o conteúdo de mais de 230 páginas de quadrinhos (totalizando oito capítulos desta vez) do arco seguinte.
O sétimo episódio ("Casa de bonecas") é o começo desse arco e tem a ingrata missão de dar continuidade do arco anterior, além de incluir muitos novos e importantes elementos na já complicada mitologia desse novo universo - tudo isso tendo de ser didático o bastante para que a audiência que não lerá os quadrinhos imediatamente entenda o que diabos está acontecendo. A ameaça do assassino Coríntio (Boyd Holbrook) torna-se ainda mais perigosa enquanto acompanhamos a organização de uma estranha convenção, Morpheus descobrindo que algo pode ressurgir para destruir não somente seu reino como sua própria existência e uma moça pobre que descobre que tem uma parente milionária viva que quer lhe ajudar (financeiramente, inclusive) a encontrar seu irmão separado ainda na infância. O clima é, literalmente, de troca de pneus enquanto o carro anda pois ainda não se sabe como essas três distintas e nem sempre interessantes histórias se interligam - e acredite, a bagunça e enrolação narrativa nos quadrinhos é ainda maior. Aqui, pela primeira vez em toda a série, a mudança de etnia de alguns personagens em relação ao gibi se justifica pois, por mais que violência contra crianças seja algo que mexe com a audiência, trazer isso para o contexto de afrodescendentes torna o conflito estabelecido não somente atual mas muito mais necessário do que nos anos 1980. Destaque óbvio para o jovem Eddie Karanja - que interpreta Jed, o irmão desaparecido de Rose Walker (Vanesu Samunyai) - que, mesmo numa curta aparição, já demonstra no olhar "a malandragem no olhar que só tem quem tá cansado de apanhar". Boyd Holbrook nasceu para o papel de Coríntio, ainda que seja uma versão um tanto suavizada do personagem. Já a Rose Walker interpretada pela estreante Vanesu Samunyai é apenas reativa e nem se pode culpar a atriz mas sim a direção, uma vez que deve-se preparar o elenco para o peso de seus papéis, sejam veteranos ou debutantes - entretanto, mesmo com alguns problemas entre intenções erradas ou reações equivocadas, a atriz está apenas operante (não chega a comprometer neste episódio mas...). E não podemos nos da adequada e inspirada interpretação de Stephen Fry como o portentoso porém simpático Gilbert, que talvez não seja quem de fato aparenta. Porém, diante da enorme confluência de informações vinda dos quadrinhos originais, o roteiro de Heather Bellson (de "Deuses Americanos" e "The Walking Dead") enxuga muita coisa e ameniza um pouco o impacto para a audiência neófita. A direção de Andrés Baiz (de "Narcos: México") não traz nada além de algo simplesmente funcional, o que deixa o episódio algo monótono e confuso de assistir...
O nono episódio ("Colecionadores") aborda a já mencionada convenção - não, não se dirá do que se trata o evento pois é uma ideia muito bem sacada e perde o peso quando se sabe anteriormente - e tenta amarrar todas as tramas dessa segunda metade da série para seguir ao esperado final. O roteiro de Vanessa Benton (que escreveu, do começo ao fim, apenas UM episódio de "How To Get Away with Murder" - e trabalhou na equipe de roteiro de "The Sandman") é confuso, verdade, mas ainda menos confuso que nos quadrinhos. Algumas situações soam um tanto ingênuas na telinha do que num gibi dos anos 1980 - como um assassino mandar a vítima ficar num quarto de hotel, entregar-lhe a chave e dizer que é uma escolha dela permanecer no local ou ir embora (e ela escolhe ficar e dormir? Oi?). A direção de Coralie Fargeat (do obscuro filme "Vingança") traz um pouco mais de energia e movimentação, mas nada que realmente se destaque. Mas a direção de fotografia de Will Baldy novamente traz um frescor visual, com ângulos ousados e incomuns, deixando a narrativa um pouco menos maçante.
"Foi tudo que me coube?"
Embora o último episódio de "The Sandman" não tenha um gancho tão convidativo assim para a próxima temporada - na verdade, a audiência deve estar se perguntando porque irmãos estão querendo de alguma forma acabar uns com os outros (e isso não fica nada claro) -, a jornada é razoavelmente satisfatória em diversos sentidos. Mas também é cansativa e claudicante em muitos momentos da série, questionando-se o motivo de não haver uma divisão de temporada ou mesmo a redução de quantidade de episódios para tornar a "maratona" mas aprazível.
A série tem diversas escolhas equivocadas de interpretação no elenco como Mason Alexander Park que interpreta uma versão bem diferente (e ruim) de Desejo em relação ao material original. Assim como a tímida composição de Vivienne Acheampong e sua bibliotecária Lucienne - e não, não tem a ver com a mudança de gênero ou etnia por conta da personagem ser um homem branco nos quadrinhos (temos, sim, de oferecer bons papeis de destaque para atores e atrizes afrodescendentes mas também há de convir que é premente extrair a melhor interpretação desses personagens justamente por conta disso - para que ninguém diga que tal ator ou atriz só conseguiu o papel por conta de fazer parte de uma cota racial ou, pior, por pura "lacração"). Timidez também é o que se pode dizer da já citada abordagem de Kirby Howell-Baptiste em relação à personagem Morte.
No fim das contas, "The Sandman" é como Neil Gaiman tentando corrigir os erros de escrita e falta de diversidade em seus textos do passado da mesma forma que George Lucas o fez quando lançou a edição especial de "Star Wars" no final dos anos 90 para que toda uma nova geração aprecie o que virá no futuro. Não deixa de ser uma boa série, mas que passa raspando de ano por conta de uma porcentagem mínima de acertos acima dos muitos erros que apresenta. Aguardemos a segunda temporada, que deve abordar o elogiado arco "Estação das Brumas".
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