"Wandinha", "Sandman", "O Pálido Olho Azul", "Contos de Arcádia", "Altered Carbon", "Desventuras em Série", "Scooby-Doo" e até mesmo "Young Sheldon" são apenas alguns exemplos de produções de sucesso, que, em maior ou menor grau, são inspiradas pela obra do influente autor Edgar Allan Poe (1809-1849). O que esperar, então, de uma minissérie inteira dedicada a adaptar alguns de seus mais notórios trabalhos?

Crianças enxeridas
Para os admiradores do célebre escritor que estavam "empoegados" com a possibilidade de finalmente apreciarem uma adaptação de sua vasta obra, é lamentável que a minissérie "A Queda da Casa de Usher" não faça jus à expectativa. Também vale mencionar que, pelo material-base se tratar de um repertório de publicações centenárias, algumas informações presentes nesta crítica podem ser consideradas "spoilers".

A produção é mais uma criação de Mike Flanagan, que acumulou notoriedade com as minisséries "A Maldição da Residência Hill", "A Maldição da Mansão Bly" e "Missa da Meia-Noite" na plataforma paga de streaming Netflix. Mas, com esse histórico de sucesso, o que há de errado justamente com a adaptação de uma das mais aclamadas obras de um ícone da literatura de Língua Inglesa?

Em primeiro lugar, é necessário esclarecer que a minissérie vai além da adaptação, podendo ser considerada, na verdade, uma releitura. Isto porque - apesar do título da série e dos episódios (todos referências a outras obras de Poe), dos nomes de alguns personagens e de elementos narrativos - é contada uma história diferente da original.

O criador da série compartilha o roteiro dos episódios com Justina Ireland (da série em podcast "Star Wars - The High Republic: A Test of Courage"), Rebecca Klingel (de "A Maldição da Mansão Bly"), Dani Parker (de "Missa da Meia-Noite"), Kiele Sanchez (de "Criminal Minds"), Jamie Flanagan (de "O Clube da Meia-Noite"), Emmy Grinwins (da minissérie "Império da Dor") e Matt Johnson (estreando como escritor). Além disso, divide a direção com Michael Fimognari (do longa "Para Todos os Garotos - Agora e Para Sempre").

Porém, não é apenas em conteúdo que o trabalho de Flanagan diverge do original. A forma como a trama é conduzida também difere bastante. Enquanto Poe construía suas narrativas envoltas em mistério e por uma atmosfera de crescente e angustiante tensão, a minissérie já apresenta uma sequência de abertura justamente descrevendo o destino dos personagens. Não há o que desvendar sobre o que lhes acontecera. O desenrolar da trama apenas mostra, em detalhes, os acontecimentos.

O terror crescente trazido pela escrita do autor também não é reproduzido aqui. Ao contrário, os realizadores optam por cenas de horror e violência gráficos que soam mais grotescos do que horripilantes. Fora os mal colocados momentos de jump scare - um clichê do gênero, mas que pode surtir efeito quando bem aplicado. Entretanto, o que se vê são ocorrências que algumas vezes chegam a ser previsíveis, frustrando a devida reação do público.

Falando em frustração, talvez a maior de todas seja a participação de Carl Lumbly (da série "This Is Us") como C. Auguste Dupin. O genial detetive, protótipo arquetípico do gênero de romance detetivesco, é convertido em um mero procurador, que passa longe da sagacidade do original. Há um esquálido vislumbre de suas habilidades num momento que não interfere em nada na trama principal. E ainda por cima, ocorre em flashback, quando é interpretado por Malcolm Goodwin (da série "Reacher").

No mais, é praticamente um mero espectador mais inútil que o Inspetor Clouseau (personagem do saudoso Peter Sellers na franquia "A Pantera Cor de Rosa") ou o Tenente Frank Drebin (do igualmente saudoso Leslie Nielsen na cinessérie "Corra Que a Polícia Vem Aí"), figuras atrapalhadamente cômicas, mas cujas ações contribuíam par a solução dos casos. Além da deturpação do original, é completamente jogada no lixo a essência do personagem que inspirou a criação de outros, como Sherlock Holmes, Hercule Poirot e Gil Grissom.

Mark Hamill - o eterno Luke Skywalker - é melhor aproveitado em sua representação de Arthur Gordon Pym. O que não quer dizer necessariamente que seja bom, pois o intrépido e destemido jovem aventureiro do único romance de Poe é transposto como o típico advogado / capanga de Roderick Usher (Bruce Greenwood, da minissérie "I Know This Much Is True"), que apesar de demonstrar muita presteza, ainda está aquém de sua contraparte literária. Principalmente levando em conta que se trata do protagonista da obra que inspirou até mesmo outros escritores como Júlio Verne (1828-1905) e Herman Melville (1819-1891).

Inclusive, a composição da maioria dos personagens é pobre, para se dizer o mínimo. Principalmente no que se refere à prole de Usher, que aliás inexiste no conto. Todos unidimensionais e, em alguns casos, beirando a caricatura. É difícil para o público sentir simpatia ou mesmo antipatia por eles, salvo em pouquíssimos casos.

Para piorar esse aspecto, algumas características desses personagens geram certa confusão. Com a ideia de que a tragédia que se abate sobre a família Usher seja um tipo de punição, chega a parecer moralista, dada a natureza da diversidade deles. Por exemplo, um personagem é pansexual e adepto do amor livre, o que pode dar a entender que esse seria o motivo de seu fim.

Curiosamente, a relação incestuosa dos gêmeos Roderick e Madeline (Mary McDonnell da série "Fargo"), sutilmente insinuada no conto, aqui não dá qualquer sinal. Algo surpreendente, já que, na literatura, o autor tinha à sua disposição apenas a escolha de palavras para incutir na mente do leitor as suas intenções. Já o audiovisual tem a possibilidade de mostrar, mesmo que em pequenos gestos - mas neste caso, não o faz.

Quanto à produção em si, carece de unidade em boa parte do tempo, principalmente na primeira metade. A intercalação entre as sequências de terror e drama deixa evidente a falta de coesão na narrativa visual, como se fizessem parte de obras diferentes. E, num aspecto geral, pode-se classificar a minissérie como uma telenovela dramática - pontuada por momentos tenebrosos.

Outro fato curioso é a encenação teatral adotada pela direção. Poucas são as cenas nas quais há mais personagens presentes do que os que participam dos diálogos, como em uma peça. Inclusive há momentos de verdadeiros solilóquios, nos quais os personagens dominam a narrativa, principalmente em falas expositivas. O mais interessante sobre isso é o fato de que, diferentemente de outros aclamados autores - como Shakespeare e Nelson Rodrigues, que escreviam especificamente peças teatrais -, Poe criava seus textos sem considerar essa possibilidade, valorizando mais os contos e poesias.

Sobre o elenco, as atuações são divididas. Os já mencionados Lumbly, Greenwood, Hamill e McDolnnell se juntam a Carla Gungino (de "Jogo Perigoso"), T'nia Miller (de "Sex Education"), Willa Fitzgerald (da série "Billions"), Zach Gilford (de "Missa da Meia-Noite"), Katie Parker (de "O Clube da Meia-Noite"e Kyliegh Curran (de "Doutor Sono") num verdadeiro desfile de talento.

Ao passo que  Henry Thomas (de "Cemitério Maldito: A Origem")Rahul Kohli (de "A Maldição da Mansão Bly")Samantha Sloyan (de "Grey's Anatomy")Matt Biedel (da série "Narcos: México")Kate Siegel (de "Havaí Five-0")Sauriyan Sapkota (de "O Clube da Meia-Noite"Paola Nuñez (de "Resident Evil: A Série") poderiam ter sido substituídos por quaisquer outros artistas em suas interpretações. Coincidentemente, as melhores atuações cabem aos personagens que já existiam nos escritos de Poe, enquanto que as mais fracas são dos que foram criados para o programa. Sem contar os que não fazem diferença alguma para a trama.

Quanto aos aspectos técnicos, ainda há o perceptível e incômodo problema na edição de som de Shane Connelly (de "Altered Carbon") em algumas cenas, nas quais o som ambiente se sobrepõe às falas dos personagens, dificultando sua compreensão. Mesmo assim, a trilha sonora original composta por The Newton Brothers (do vindouro "Five Nights at Freddy's - O Pesadelo Sem Fim") cumpre o seu devido papel, mas sem qualquer brilhantismo que a destaque. O mesmo pode ser dito da fotografia do diretor Michael Fimognari.  Ao menos os efeitos visuais encabeçados por Krista Allain (da série "The Expanse"), os efeitos especiais de Quinn Rockhill (da minissérie "Vingança Sabor Cereja") e a maquiagem de Ozzy Alvarez (do recente "Jogos Mortais X") são suficientemente convincentes.

Mesmo com mais pontos negativos do que positivos, não significa que a produção seja inassistível. Contudo, o espectador precisa ter baixíssima expectativa, tanto pela pouca fidelidade ao material original, quanto por não ser uma obra de terror e suspense de alta qualidade. Mas ainda é possível apreciá-la como um passatempo razoável, principalmente para os fãs de Flanagan. Porém, é visível que, mesmo no fim de semana de estreia, não conseguiu alcançar a primeira colocação e rapidamente sofreu uma queda vertiginosa na lista dos 10 programas mais assistidos da plataforma naquele período.

As mudanças na história até são compreensíveis, pois se justificam pela adaptação da mensagem principal aos tempos atuais. Contudo, no fim das contas, esta mensagem é imensamente dependente da exposição para se fazer clara, enquanto que, no conto, ela fica evidente mesmo que de forma alegórica e sutil.

Enfim, "A Queda da Casa de Usher" pode não agradar aos apreciadores de Poe e do gênero de terror, mas, talvez, seja um bom entretenimento para os fãs de Flanagan. Porém, com certeza já passou da hora do público receber apenas produções de nível regular, sob a desculpa de apresentar clássicos a novas audiências. Há muito, com raríssimas exceções, não são apresentadas obras originais que desafiem os espectadores...


Antonio Carlos Lemos até lida bem com mudanças, mas deixa bem claro que, mesmo na Marvel, a capital dos EUA ainda é Washington, D.C.

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