"Suas respostas estão bem geniais hoje, hein...", disse-me uma professora de História Geral do meu ensino médio quando respondi "Para não repetir erros do passado" à pergunta "Por que estudamos História?". Mesmo que esse escriba não ache a tal resposta nem perto de ser considerada genial (mas, sim, o pensamento comum), é notório o espanto do corpo docente, em qualquer época, a respeito de jovens que conhecem a própria História do Brasil - principalmente o que não é contado nos livros escolares. E é mister ter algum conhecimento ao menos intermediário de História do Brasil para ter uma melhor experiência quando for assistir ao filme "Ainda Estou Aqui".
E isso é um problema que fez com que outros bons filmes brasileiros - como "Carandiru" (2003), "Tropa de Elite" (2007) ou o documentário "Democracia em Vertigem" (2019) - não conseguirem avançar em premiações pelo mundo. Claro que existe outros detalhes técnicos como a falha do marketing e sessões especializadas para a imprensa internacional e votantes (coisa que "Ainda Estou Aqui" aprendeu a lição e tem de sobra) mas o principal é que o cidadão do outro lado do mundo tem que entender a dor do personagem que fala português brasileiro a ponto de se importar.
Analisando friamente o roteiro escrito por Murilo Hauser e Heitor Lorega - livremente adaptando a história real do livro homônimo escrito por Marcelo Rubens Paiva -, é como um "resumão" para relembrar fatos da ditadura militar de meados dos anos 1960 até boa parte da década de 1970, como quem precisa somente de alguns detalhes para se situar ao fazer uma prova de múltipla escolha. E, mesmo que a audiência - e a crítica! - estrangeira tenha novamente abraçado esse filme brasileiro como se deles próprios falasse, pode gerar a errônea impressão de que a tortura contra presos políticos no Brasil durante o período tenha sido algo "isolado", como se pudesse haver separação entre escrutínio advindo do próprio governo da época e "no mais, tudo está bem para o restante".
Estranhamente, existe até um personagem odioso, um militar com cara de mau, cenho franzido, que é usado apenas para exposição de algumas (poucas) informações sobre Rubens Paiva. Até aí, é questionável mas faz parte nesse tipo de narrativa. O que não faz sentido é colocar na boca desse personagem a frase "olha, eu quero deixar claro que não concordo" - como se fosse apenas o serviço dele guiar pessoas para celas, mantê-las cativas, acordá-las no meio da noite para dizerem em voz alta o nome completo e não permitir nem que troquem suas roupas no período que estão presas. Ainda que a estratégia fosse lembrar de militares reais como o que é relatado no polêmico documentário "Pastor Cláudio" (2019), essa fala específica não acrescenta nada à trama, exceto "nem todo militar...".
(talvez, por isso mesmo, tenha ganho o prêmio de Melhor Roteiro no concorrido Festival de Veneza em 2024, uma vez que a trama se tornou "palatável" e "acessível" mesmo para quem não viveu ou estudou sobre o tenebroso período histórico brasileiro pois traz o que fez estrangeiros se apaixonar pelo Brasil nos anos 1960 e 1970 como a música e o estilo que emulava uma nova capital norteamericana de ser...)
Porém, caso houvesse um pouco mais de exigência por parte do diretor com seu elenco coadjuvante, a audiência teria menos textos "decorados" e mais "vividos", como na cena em que um amigo da família finalmente confessa à Eunice que o motivo dos militares terem levado seu marido foi por conta da pequena colaboração ao distribuir cartas de militantes contra a ditadura - dentre outras coisas - para familiares por meio de entregas clandestinas.
Essa cena específica tem um problema pois há uma dicotomia em questão: o amigo da família não quer revelar o que Rubens Paiva fazia mas só concorda em dizer a verdade após a própria Eunice dizer que foi presa e torturada. O ator em cena nem pestaneja e sai despejando informação - quando o mais humano a se fazer no momento seria pensar um pouco, relutar ao menos um pouquinho e até titubear para, só então, seguir o caminho da revelação. O filme é repleto de diversos momentos que mereciam um "ajuste fino" nesse sentido...
Selton Mello interpretando o engenheiro Rubens Paiva tem pouco o que fazer em tela além de ser um pai brincalhão, amoroso, marido atencioso e militante "secreto". Funciona pois Mello desde sempre tem esse jeito "queridão" por natureza. E sua presença faz realmente falta quando precisa sair de cena. E, claro, a dama da dramaturgia brasileira Fernanda Montenegro - que interpreta Eunice Paiva em seus últimos anos de vida - dá um show e emociona com sua performance totalmente crível. Ainda que não tenha texto "pronunciável", o que faz em cena é de arrepiar. O restante do elenco é funcional, sem grandes destaques.
A direção de fotografia de Adrian Teijido (de "Medida Provisória") opta por iluminação mais sutil para marcar as quatro "fases" da trama. Começa com muita luz, bastante iluminação natural, por conta da alegria que contagia o ambiente festivo da casa e da vida da família Paiva. Depois do desaparecimento, tudo fica meio repleto de sombras, mesmo em ambientes externos. Em seguida, tons mais amenos e estéreos de iluminação, para marcar a virada de década. E, por último, um equilíbrio entre cor, luminosidade e sombras, revelando o fim, o recomeço e o novo ciclo da família Paiva.
Um bom destaque para a trilha sonora original de Warren Ellis (do excelente "A Qualquer Custo" - não confundir com o homônimo roteirista de quadrinhos mas sim o instrumentista da banda Bad Seeds, com Nick Cave), leve e "solar" quando necessária, mas também tensa e claustrofóbica em outros momentos. Nada que possa ser lembrado em premiações mas, ainda assim, um trabalho muito bem executado. É necessário salientar a importância do resgate da seminal canção setentista "É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo", esquecida composição de Roberto Carlos e do saudoso Erasmo Carlos, de seu disco "Carlos, Erasmo" (1971), além de outros sucessos de Gal Costa, Caetano Veloso e outros "subversivos" da MPB.
Também vale destacar a reconstituição de época, como o design de produção de Carlos Conti (do recente "A Contadora de Filmes") ou a direção de arte da dupla Paloma Buquer e Tatiana Stepanenko (de "Bingo - O Rei das Manhãs"), assim como o figurino criado por Helena Byington e Cláudia Kopke (ambas de "Tropa de Elite 2"), transportando automaticamente a audiência para os anos 1970...
"Ainda Estou Aqui" é um esforço hercúleo para trazer o careca dourado novamente para solo brasileiro (sim, já ganhamos Oscar) mas derrapa em detalhes que poderiam transformá-lo num filme inesquecível. Mas, independente do que se possa dizer acerca de deméritos, só de fazer com que o cinema brasileiro seja novamente reconhecido pelo restante do mundo - incluindo com premiações - já o coloca como um dos mais importantes da História deste combalido audiovisual tupiniquim. Assista com baixa expectativa e celebre a dupla de Fernandas (Torres e Montenegro). Elas merecem. E, agora, o mundo sabe. Pode não ser inesquecível mas, mais do que nunca, é extremamente necessário... "Para não repetir erros do passado".
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