Fred Flintstone, Tony Soprano, Don Draper, Dr. Gregoy House, Walter White, Saul Goodman... "Se fossem dar ouvidos as opiniões convencionais ainda em vigor, esses seriam personagens que os americanos nunca permitiriam entrar em sua sala de estar: criaturas infelizes, moralmente incorretas, complicadas, profundamente humanas. Eles se envolviam num jogo sedutor com o espectador, desafiando-o emocionalmente a investir, eventualmente torcer e ate amar uma gama de personalidades criminosas", como exemplifica Brett Martin, autor do livro "Homens Difíceis: Os Bastidores do Processo Criativo de Breaking Bad, Família Soprano, Mad Men e Outras Séries Revolucionárias" (Ed. Aleph, 2014).
Por sorte, desde que foi gritado o primeiro "iabadadadu", diversos homens difíceis fizeram parte do imaginário coletivo das séries de TV, filmes, livros, games e outros formatos de entretenimento, trazendo uma variedade de seres detestáveis mas que faziam o que precisavam fazer para alcançar seus objetivos. Ainda que o marido de Wilma Flintstone fosse apenas o estereótipo ambulante de um operário norteamericano padrão - dos inocentes anos 1960 até os confusos tempos atuais -, uma regra se impôs: esses homens podem até serem "difíceis" mas precisam ter mais a oferecer além de ofensas gratuitas ou violência pontual. Precisam alcançar objetivos que tragam algum tipo de "recompensa" à audiência - quase como uma desculpa para que se goste do personagem ou justifique seus atos.
Sendo assim, Don Draper trai a esposa - que cuida de seus filhos - com uma artista mas é um ser criativo, o que lhe rende material humano para criar peças publicitárias que ganhem prêmios (e o mantenha empregado para continuar mantendo seu casamento) ou Dr. House trata pacientes e colegas de trabalho como substrato de pó de estrume mas salva vidas no fim do dia ou, ainda, Walter White comercializa substâncias consideradas ilegais em diversos estados mas só o faz pois o sistema de saúde dos Estados Unidos é caríssimo de se manter e ele precisa manter sua família bem financeiramente falando para quando não estiver mais vivo.
Na trama - livremente baseada na série de livros de Jussi Adler-Olsen -, Carl Morck é um detetive atormentado pela culpa após um ataque que deixou seu parceiro paralisado e outro policial morto. Em seu retorno ao trabalho, é designado para um caso arquivado há quatro anos que não tem nenhuma pista e parece inconclusivo pois tudo aponta para um desaparecimento em pleno alto mar. Porém, as parcas evidências apontam justamente o contrário...
O roteiro escrito pelo trio Stephen Greenhorn (de "Doctor Who"), Colette Kane (da obscura série "Moving On") e Chandni Lakhani (de "Vigil") é o mais apropriado para quem tem predileção por aquele tipo de entretenimento mais cerebral e que traz personagens bem trabalhados, com diversas camadas. Além disso, as reviravoltas acontecem em momentos milimetricamente calculados, fazendo com que a audiência não desconfie de fato o que está acontecendo - até acontecer.
O tom mais realista - e pessimista - dessa improvável equipe policial traz não somente um frescor narrativo bem interessante como também demonstra um tremendo respeito ao verdadeiro processo investigativo (com algumas ressalvas que todo programa policial tem) e ao material base - que já havia sido adaptado em filmes há alguns anos...
(ok, talvez exista alguma pequena "barriga" nos dois últimos episódios, em que muita coisa precisa acontecer e a concatenação desses fatos não são muito bem ordenados - e tem também a questão de alguns cenas "felizes demais" após a resolução que, quem sabe, possa vir a causar estranheza a quem estava acostumado com o clima sombrio da trama, mas nada que realmente atrapalhe o entretenimento)
O centro das atenções do elenco é, óbvio, o ator Matthew Goode (que fãs de quadrinhos devem se lembrar de sua questionável interpretação como o vilão Ozymandias em "Watchmen" - o filme de 2009 e não a série de 2019 - e da série "Downton Abbey"). Sua interpretação como o perspicaz detetive que sobreviveu a um atentado ainda sem solução - que responde tudo de forma irônica e abusada, como se seu sobrenome fosse "mock" (deboche) e não "Morck" - traz um amadurecimento muito bem-vindo ao ator, que entende bem seu personagem mas também se deixa guiar pela direção quando necessário.
O elenco é imenso (mesmo!) e é claro que Leah Byrne (da minissérie "Nightsleeper"), Alexej Manvelov (da série "Jack Ryan") e Jamie Sives (da minissérie "Chernobyl") acabam se destacando como a equipe que auxilia o protagonista a resolver o caso, atuando como o id, ego e superego do personagem. Também tem como destacar Kate Dickie (da série "O Dia do Chacal") como a comissária de polícia, travando diversos debates acalorados não somente com Morck mas também com outros subordinados.
Outros membros do elenco que merecem destaque: Tom Bulpett (da série "Padre Brown") - interpretando um homem, irmão da vítima desaparecida, que tem problemas cognitivos mas consegue se comunicar através de desenhos (o ator desaparece em meio ao personagem, fazendo com que a audiência abrace sua performance com o se fosse real; Steven Miller (da série "Shetland") tem um difícil papel - que tem a ver com um importante momento do roteiro - e entrega com complexidade um personagem que, em outras mãos, soaria bem caricato; o mesmo pode ser dito de Alison Peebles (da série "River City"), cujo amargor e sede de "justiça" podem ser sentidos, muito próximo dos extremos que se vê nos noticiários; mas quem não deve ser esquecida é a atriz Chloe Pirrie (da série "Carnival Row"), que transcende bem entre alguém bem sucedido e uma vítima sofrendo horrores indescritíveis, sucumbindo a uma tortura psicológica enquanto ninguém que a conhece sabe o que ocorre.
Já a trilha sonora composta por Carlos Rafael Rivera (da série "Hacks") é bem espacial e nada intrusiva, sendo usada apenas para realçar momentos que já estão excelentes, como um tempero apenas levemente polvilhado para trazer aquele fundinho de sabor ao prato.
"Dept. Q" tem pouquíssimos momentos de ação - mas são catárticos quando ocorrem - e está repletos de bons momentos, que certamente ficarão na memória do público. Ao lado de "The Pitt" e "Adolescência", "Dept. Q" é um dos melhores programas televisivos do ano. Perfeita para "maratonar" - ainda mais depois daquela reviravolta do final do primeiro episódio...
Kal J. Moon é rabugento, já bebeu muito chá, também não entende as gírias utilizadas pelos jovens e, claro, é um homem difícil.
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