Dirigido pela ganhadora do Oscar Domee Shi, "Red – Crescer É Uma Fera" é a nova animação Disney / Pixar mas com uma grande diferença: o ponto de vista, agora, é feminino.


"É sobre isso, meninas (e tá tudo bem)"
Quem curte animação já viu a jornada do herói ser reutilizada diversas vezes. E, como de costume, sempre pelo ponto de vista masculino. Seja um aprendiz de pirata ou um de ninja, um órfão vindo de outro planeta que ganha poderes inimagináveis quando chega à Terra, ou até mesmo quatro tartarugas que decidem combater o crime. Esse paradigma vem mudando de forma bem sutil de uns anos para cá. Desde que "Mulher-Maravilha" e "Capitã Marvel" provou que mesmo controversos filmes estrelado por protagonistas femininas poderiam ser algo lucrativo para o cinema que vemos algumas tentativas nesse sentido de levar o "olhar feminino" para produções do gênero. Mas nas animações, apesar de vermos desde sempre isso na TV ou no streaming, a "resposta" no cinema é quase nula e vinda praticamente de um só lugar: Disney / Pixar (com filmes okay a bem sofríveis, diga-se de passagem). E é nesse "vácuo de poder" que entra "Red – Crescer É Uma Fera".


Na trama, durante o distante ano de 2002, Mei Lee, uma confiante e desajeitada garota de 13 anos, dividida entre continuar sendo a atenciosa filhinha da mamãe e o caos da adolescência. Ming - sua protetora e um pouco autoritária mãe - nunca está longe de sua filha, uma infeliz realidade para a adolescente. E como se as mudanças em seus interesses, relacionamentos e no corpo não fossem suficientes, sempre que ela fica com as emoções em alta (o que é praticamente SEMPRE), se transforma em um... panda vermelho gigante! Justamente quando ela e suas amigas tinham combinado de ir ao show de sua boy band favorita...


Embora não pareça, esta animação de longa metragem busca inspirações de lugares bem inóspitos mas condensa tudo com um "molho" bem original, trazendo um frescor há muito distante das animações criadas pelo povo que trouxe "Toy Story" e companhia às telonas e telinhas do mundo inteiro. Temos aqui pitadas de "O Garoto do Futuro" (obscuro filme estrelado por Michael J. Fox - e que inspirou o seriado "Teen Wolf"), podemos ver que a amizade das meninas se parece com as jovens do anime "Sailor Moon", a tal banda fictícia 4*Town parece uma cruza entre Backstreet Boys, NSYNC ou qualquer outra boy band que fazia a cabeça das adolescentes dos anos 1990 a 2000 (e enfurecia os rapazes) - tem até um pouco de uma história em quadrinhos do Monstro do Pântano escrita por Alan Moore onde uma mulher estava de TPM e acaba se transformando numa criatura licantrópica parecida com um lobisomem - e o clímax da história parece ter vindo de outro obscuro filme feito, vejam só, pela própria Disney: "Querida, Estiquei o Bebê" (só assistindo a animação pra entender o motivo).


Porém nada disso tira o mérito do roteiro escrito por Julia Cho e Domee Shi (baseado na história de ambas com Sarah Streicher), que pega esse imenso caldeirão de referências e faz uma espécie de "manual-mirim" de feminismo para adolescentes. E se em roteiros em geral temos a expressão "daddy issues" para designar aqueles problemas que protagonistas precisam resolver com seu passado para poder avançar a trama (e geralmente existe algo complicado a se conversar ou discutir com os pais), aqui temos a versão feminina disso ("mommy issues"?), mostrando que a exigência vinda de um matriarcado com regras muito rígidas podem causar problemas psicológicos seríssimos e acabar em confusão em algum momento no futuro (como a panela de pressão no início do filme brasileiro "Como Nossos Pais").

Seria pobre da parte de um homem dizer que os poderes da panda vermelha nessa história simbolizam, pura e simplesmente, a chegada da puberdade. O próprio roteiro faz questão de descartar, aos poucos, essa hipótese. Se no início, esse poder todo é chamado de maldição, ao final da trama vemos que trata-se, na verdade, da libertação feminina prevista pelos preceitos do feminismo - é, simples assim. Mei Mei é uma espécie de líder e inspiração entre seu próprio grupo de amigas. Quando ela recebe o poder, em vez de afastá-las (como acontece no já citado "O Garoto do Futuro"), TODAS desfrutam da fama e dos benefícios da pandinha rubra. O embate verbal com a própria mãe - "pare de mexer com o corpo desse jeito", "você não vai sair vestida assim", "esse menino fez isso contigo?!", "você é só uma criança" (como direito até a um "eu já tenho 13 anos" e tudo...) - só revela que isso já aconteceu há décadas com entre sua mãe e sua avó por conta de diferenças bobas, que poderiam ser resolvidas com uma simples conversa. Curiosamente, todas as mulheres daquela família de "rainhas do drama" passaram pelo mesmo e abdicaram justamente do que as diferenciariam. E quem diria que um filme Disney / Pixar falaria (mesmo que de forma disfarçada) sobre menstruação e o despertar do desejo sexual de pré-adolescentes?

(Uma curiosidade: na história, alguém diz que o número quatro seria "o pior número". Isso não é gratuito pois segundo a numerologia chinesa, o numeral quatro significa azar, má sorte pois usa pronúncia em chinês é bem parecida com a palavra "morte". Este fato é explorado de forma bem sutil no terceiro ato)


E sobre os quesitos técnicos, vamos destacar os múltiplos estilos de animação, misturando mangá e anime com influências de filmes coreanos (tanto aqueles estilo "O Tigre e o Dragão" como os de... terror), passando por uma vibe meio video-game. A paleta de cores é leve mas bem diversa, além de ter muitos personagens de etnias variadas não somente entre as coadjuvantes principais como em qualquer personagem no background (Repare como ninguém no filme anda perfeitamente "reto", é sempre meio inclinado ou melífluo, uns com leveza, outros com rispidez). E cada personagem tem um estilo diferente de se mexer - além, claro, das reações exageradíssimas que só quem já foi ou já viu adolescentes sabem que são caricaturas perfeitas da realidade (repare nos rostos de cada personagem na cena do show).

A trilha sonora comandada pelo compositor sueco Ludwig Göransson (ganhador do Oscar pelo trabalho em "Pantera Negra") emula bem a parte zen dos cenários orientais e asiáticos de Chinatown mas também traz a vibrante urgência da aventura quando necessário. As canções originais compostas para a banda fictícia 4*Town - compostas por Finneas O’Connell (mais conhecido como FINNEAS) e Billie Ellish - são incorporadas em dois momentos importantes da trama de uma forma não-gratuita bem interessante e são boas representantes do POP bubblegum que infestou as rádios há trinta anos...


E como não falar da dublagem brasileira? Sim, contrataram (mais uma vez) star talents como Ary Fontoura, Flavia Alessandra e Rodrigo Lombardi (desses três, o papel mais significativo é o de Flavia Alessandra, que faz a mãe de Mei Mei na versão brasileira - a original era Sandra Oh) como se esse estratagema do povo irritante do marketing fosse atrair multidões para assistir essa animação - o que, na verdade, só demonstra que não se tem fé no produto e precisa-se de "nomes fortes" para gerar engajamento em redes sociais.

Neste quesito, quem se destaca, de verdade (aprendam), é Nina Medeiros, que dubla a personagem Mei Mei. É simplesmente fantástico o que essa jovem faz em sua interpretação. Vale destacar que Mei Mei fala muito rápido em diversos momentos e Nina Medeiros tira de letra cada cena, cada pequeno detalhe vocal - o que é bem impressionante para quem está dublando há apenas seis anos (ela já esteve em elogiados filmes brasileiros como "As Boas Maneiras" e "À Sombra do Pai"). Sua interpretação impressiona já nos primeiros minutos de exibição.


Resumindo: essa é a animação da Disney / Pixar mais empolgante desde "Os Incríveis" e o longa-metragem POP com a mensagem mais relevante desde "Pantera Negra" - e divertidíssimo. Uau!

Pois é... Precisou uma menina de 13 anos de idade (feito a Luluzinha) e suas amigas para trazerem as bases do feminismo e da igualdade às animações de forma bem explícita mas nada ofensiva - muito pelo contrário. Se há alguns anos a diretora Brenda Chapman teve sua voz silenciada por conta de suas ideias libertárias no longa animado "Valente" - e, mesmo assim, acabou ganhando o Oscar naquele ano -, agora parece que aprendeu-se a lição e deixaram Domee Shi - que também ganhou o Oscar pelo curta metragem "Bao" - mostrar que lugar de mulher é onde ela quiser para fazer o que bem entender.

(Curiosamente, Mérida e Mei-Mei tem cabelos vermelhos e seus nomes começam com a letra "M". Coincidência? Acho que não...)




Kal J. Moon tem a barriga de um panda vermelho, só corta o cabelo na lua vermelha e curte a maior boyband de todas: The Beatles!

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