Dirigido pelo ganhador do Oscar Martin Scorsese, estrelado por Leonardo DiCaprio, Robert De Niro, Lily Gladstone e grande elenco - com participações de Jesse Plemons, Brendan FraserJohn Lithgow, dentre outros - o filme "Assassinos da Lua das Flores" mostra, mais uma vez, a origem das motivações de como um país como os Estados Unidos chegou ao estado preconceituoso e prepotente que conhecemos hoje em dia...


"Apenas ouça a tempestade em silêncio..."
Scorsese demorou um bom tempo para tirar esta obra audiovisual do papel. Desde que leu o livro escrito por David Grann, sabia que precisava levar essa história esquecida para as telonas. E, mesmo conseguindo - depois de muito esforço e uso de lábia - convencer o chefe Standing Bear a deixá-lo contar essa trama macabra no cinema, todo o projeto ainda mudou de formatação devido à pandemia, uma vez que o roteiro prévio trazia o personagem Tom White (agente do recém-criado Bureau of Investigation, o protótipo do FBI, interpretado por Jesse Plemons) - como protagonista e seguia toda a investigação do caso.

Mas, com todo o tempo "livre" que a pandemia obrigou todo mundo a rever projetos e conceitos, Scorsese provavelmente descobriu que aquela não era a forma "correta" de se contar a jornada, pois tudo o que é mostrado em tela no filme de 2023 trata justamente de... contexto - até porque, diz a máxima, "treino é treino e jogo é jogo". Sem isso, dificilmente a audiência se importaria com aquela gama de personagens, principalmente o trio defendido por De Niro, DiCaprio e, claro, Gladstone.

Na trama, membros da tribo Osage são assassinados em Fairfax (Virginia, Estados Unidos) em circunstâncias misteriosas na década de 1920, o que levanta suspeitas e chamando atenção a ponto de uma grande investigação federal ser implementada, nos primórdios do que viria a ser o FBI.


É necessário entender que, sim, "Assassinos da Lua das Flores" é um filme de quase três horas e meia de duração, o que pode ser cansativo para algumas pessoas. Porém, também faz-se necessário salientar que essa trama foi resumida ao máximo para que ficasse palatável ao público em geral, fazendo desta obra, talvez, a mais acessível do currículo de Scorsese - dando a impressão que o diretor e roteirista quis que principalmente os jovens conseguissem entender a gravidade daqueles crimes e que esses fatos, por si só, são responsáveis pela forma como os Estados Unidos tratam aqueles que consideram diferentes desde... Bem, desde sempre.

Se olharmos os outros exemplares da vasta carreira de Scorsese, pode-se perceber que esses avisos sempre estiveram lá. "Taxi Driver", "Touro Indomável", "A Cor do Dinheiro", "Os Bons Companheiros", "Cassino", "Gangues de Nova York", "O Aviador", "O Lobo de Wall Street" e até o recente "O Irlandês" tem coisas em comum: personagens obcecados por poder e... dinheiro. Mas, em "Assassinos da Lua das Flores" presencia-se não somente essa obsessão em pauta como também um pérfido plano e falta de escrúpulos para eliminar não só uma legítima linhagem familiar como toda uma etnia, o que só traz ainda mais repulsa e revolta à audiência desde o primeiro vislumbre e cada assassinato.

(É como se Scorsese encontrasse cada um de nós e dissesse "Então, preciso te contar uma coisa? Tá com tempo?". Daí, quando alguém reclamar que a história está longa demais, com toda a paciência de um bom condutor da imaginação alheia, salpica um detalhe aqui, adiciona um susto ali, ajusta pequenas arestas acolá, fazendo com que cada minuto valha realmente a pena - e isso torna Scorsese nosso professor de História favorito...)


O roteiro - escrito por Eric Roth e o próprio diretor - vai do ponto "A" ao ponto "B" traçando uma linha com diversas paralelas e que não é nem um pouco reta pois oscila-se aqui e ali para que o espectador tenha todo um panorama vasto para enxergar cada intenção e, assim, aprecie cada reviravolta... Embora essa história tenha MUITOS personagens coadjuvantes, a grande maioria deles servem mais como dispositivos ambulantes para levar a trama adiante - não por ser um problema de construção de roteiro mas por conta de haver a necessidade da tal já citada contextualização da trama. Também vale ressaltar a efetividade da passagem de tempo, quando se faz necessário, de forma bem visual e orgânica, sem a necessidade de mostrar um ano ou uma data na tela - ou mesmo algum personagem dizer que tal acontecimento ocorreu há muito tempo.

Quanto à direção de atores, o que dizer? Não tem ninguém essencialmente mal no filme, num elenco coeso e deveras funcional. Mas a mola mestra desta história está sob a responsabilidade tripla de Leonardo DiCaprio, Robert De Niro e Lily Gladstone

O tardio vencedor do Oscar DiCaprio tem, talvez, o personagem mais diferente de toda sua carreira, um homem dispensado do exército, preguiçoso e afeito à jogatina, além de totalmente fiel às ~"oportunidades" oferecidas por seu tio. Embora a interpretação beire um tanto à caricatura do que é ser um homem de pouca cultura e alguma dificuldade de raciocínio (definitivamente, esperteza não é, nem de longe, seu forte) - que quase exagera na tinta em muitos momentos, como a embocadura torta para emular um jeito interiorano de falar -, funciona à narrativa e faz com que a audiência torça por sua personagem em um primeiro momento, tenha ojeriza em muitos outros, para detestá-lo de fato ao final...

(o único destaque realmente negativo da direção e do roteiro em relação ao personagem de DiCaprio é que ele é descrito, logo no começo, com uma sequela dos tempos de guerra, que o impossibilita de movimentos bruscos e esforços mil mas, que ao longo da rodagem, essa informação é esquecida e totalmente abortada)


O duas vezes vencedor do Oscar Robert De Niro interpreta mais um personagem poderoso e carismático em sua carreira, com alguns diferenciais como uma suposta devoção religiosa, além de compartilhar interesses com membros de povos originários dos Estados Unidos - inclusive fluente em linguagem nativa. Sua personagem William "Bill" Hale mostra-se como uma pessoa muito respeitada no pequeno porém próspero vilarejo de Fairfax, a ponto de até ostentar o posto de xerife honorário - ou seja, aquele lugar está em suas mãos e, também em seus bolsos. De Niro traz uma canalhice tamanha a esse proto-mafioso (sim, esse é mais um filme de máfia de Scorsese) que não tem como não compará-lo a alguns políticos brasileiros - da ficção ou da vida real -, num paralelo de personalidade que diz defender família e tradição judaico-cristã mas que também mata pessoas para alcançar seus objetivos, que vimos ressurgir no mundo atual há coisa de uma década para cá...

Mas o real destaque desta trinca de ases é mesmo Lily Gladstone. Fazendo alguns trabalhos aqui e ali (como no filme "First Cow" ou na série "Billions"), não é como se aparecesse "do nada" mas passou batido pelo radar de todo mundo. Assistir sua atuação minimalista como a gentil porém determinada Mollie Burkhart - provavelmente a personagem feminina mais importante do cinema em 2023 - traz um misto de orgulho, ternura, piedade e torcida por sua personagem. O que Gladstone faz com poucos gestos e olhares - que dizem mais à audiência do que os mais verborrágicos diálogos - é algo que não se vê todo dia (e, diga-se de passagem, não se vê em muito tempo) na tela do cinema. E se ela não ganhar o Oscar em 2024, alguém vai precisar de escolta policial na vindoura cerimônia da Academia...


Um destaque entre o numeroso elenco coadjuvante é Ty Mitchell como o atrapalhado capanga John Ramsey. Mas não se engane: ele não faz parte de um núcleo humorístico (embora uma cena bem específica no terceiro ato possa fazer com que a plateia ria de nervoso com a situação apresentada) mas rouba cada cena em que aparece, representando como se não fosse um ator mas sim uma pessoa retirada dos anos 1920 e trazida para o dias de hoje para nos mostrar como agiam os habitantes daquela distante época. Existe uma cena também no terceiro ato que mostra a que veio, revelando todo o potencial dramático do veterano ator. Pode nem ser considerado para premiações mas não seria injusto se ocorresse.

Os outros notáveis nomes do elenco podem constar como meras participações especiais como o já citado Plemons (que está correto porém tímido sem uma grande cena para mostrar o que sabe fazer) ou mesmo Fraser e Lithgow (que estão bem, claro, mas com muito pouco a oferecer, tornando-se apenas meros motivadores do avanço da trama - embora, vale dizer, que Fraser tenha dois momentos muito bons).


Nos quesitos técnicos, a direção de fotografia comandada pelo mexicano Rodrigo Prieto (de "O Irlandês") é inebriante, equilibrando bem momentos contemplativos da vasta paisagem local como trazendo bastante tensão a momentos aterrorizantes dos assassinatos. O único porém de seu trabalho aqui é uma cena de princípio de incêndio, onde usa-se um filtro que, talvez, não tenha combinado tanto com o restante do que foi apresentado anteriormente.

O figurino projetado por Jacqueline West (de "A Lei da Noite" e do recente "Duna") é competente e deve figurar entre as premiações do próximo ano. A design de produção de Jack Fisk (de "O Regresso") é bastante funcional e, mesmo as partes filmadas em cenário, não aparentam algo cenográfico pois tudo exala uma realidade absurda...


Já a trilha sonora de Robbie Robertson (1943-2023) - já saudoso veterano dos filmes de Scorsese como "Silêncio" e "O Irlandês", dentre muitos outros) - é potente porém mal utilizada. A primeira faixa, que abre o filme, traz a imersão necessária para se acompanhar essa história. Porém, a trilha mistura muitas obscuras canções de época aliada com pouquíssimas peças do repertório composto por Robertson, deixando apenas mais uma canção para uma cena próxima do final da trama (e, mesmo assim, interrompida de forma um tanto abrupta, numa edição no mínimo canhestra).

O cinema existe para que filmes como "Assassinos da Lua das Flores" possam ter chance de serem contemplados, estudados, debatidos e analisados. Espetáculo define. E Scorsese, mais uma vez, tinha razão: ISSO é Cinema, com "C" maiúsculo de "caraca...". O resto é qualquer coisa descartável, que não deveria merecer muito de nossa atenção. Assista. Valerá cada centavo do caro ingresso...




Kal J. Moon provavelmente teria sido um limpador de esterco de cavalos de bandidos na década de 1920 - ou seja, não seria muito diferente de hoje em dia...


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