Dificilmente qualquer pessoa seria amiga de sua versão mais jovem, se pudesse viajar no tempo e conviver consigo própria por um período maior que um dia. Jovens ainda não tem independência financeira muito menos profundas matizes emocionais com as quais pessoas mais maduras possam se relacionar - principalmente com tudo o que tem de "errado" que ainda precisa de ajuste.
Mas, se pararmos para pensar que o público jovem só passou a ser considerado alvo da publicidade (e, por isso mesmo, centro de atenção do que se almeja ser) a partir dos anos 1950 - menos de um século -, também podemos entender que parte dessa nova fatia de mercado passou a ser voltada a atender não aos anseios de jovens mulheres mas, sim, impor uma distorcida visão de que os melhores anos da vida necessitam ser prolongados a maior quantidade de tempo possível. E é nessa tecla que "A Substância" toca, de forma estridente e incômoda.
Na trama, uma celebridade em decadência decide usar uma substância que cria temporariamente uma versão mais jovem e "melhor" de si mesma. Mas as coisas não demoram para sair do controle...
Por conta disso, o roteiro (que poderia facilmente ser uma ótima graphic novel) "pinta" todos os portadores de cromossomos XY da trama como hiper caricatos, "bobos que nem cachorro" - como diria o Trovador Solitário -, que move mundos e fundos por um bom rabo de saia. Mas, independente disso, todos ou tem algum poderio (chefe de programação de TV, segurança, médico, operador de VT) ou pensam ter algum tipo de controle de situação (como o vizinho da protagonista, que diz que ambos tem um encontro sem mesmo a confirmação dela).
Olhando friamente à primeira vista, pode até parecer que essa história é um "anti-Barbie". Porém, se olhar nos pormenores, todas as explanações sobre "patriarcado" que o filme de 2023 alega combater também estão em "A Substância". Só que, diferente de "Barbie", não se trata de uma "tese de conclusão de curso" (ou sermão) disfarçada de filme mas sim uma ótima história com um subtexto que traz os tópicos que, um dia, possam servir de material para uma "tese de conclusão de curso". E tudo embalado num texto tão inteligente que, por diversas cenas, não há necessidade de diálogos, respeitando a capacidade cognitiva da plateia, que todo mundo será capaz de entender o que está sendo dito ou mostrado, mesmo sem precisar emitir qualquer palavra ou explicar através de falas expositivas.
Nas palavras de Fargeat, "(...) Este filme vai ser sangrento. E vai ser muito divertido ao mesmo tempo. Porque não conheço arma mais forte que a sátira para mostrar ao mundo o absurdo das suas próprias regras. E o mais importante: acho que será muito oportuno. No final é disso que trata este filme. Uma libertação. Um empoderamento".
O destaque do diminuto elenco é mesmo de Demi Moore, que se desnuda (literalmente) de qualquer pudor para viver a ex-estrela da TV em decadência. Sua personagem tem claras inspirações em "O Retrato de Dorian Grey" (de Oscar Wilde, 1854-1900) - não à toa, tem uma enorme pintura dela própria na sala de estar de seu apartamento, ilustrando seus anos de juventude - mas também de "Frankenstein" (de Mary Shelley, 1797-1851) e dos personagens trágicos dos filmes do cineasta David Cronenberg (mais especificamente o remake / reinvenção de "A Mosca" - e ainda presta mais homenagens a esse filme ao longo da trama). A Hollywood retratada em "A Substância" (que, curiosamente, foi toda filmada na França) é tão caótica e estranha que a "Hollyweird" de "Mapa para as Estrelas" - o que só faz a atuação de Moore (que segue um crescendo de emoções, de apática à decidida, passando pela vingança e até pela culpa "maternal") parecer tão autêntica e digna de nota (não à toa, ganhou o reconhecimento do Golden Globes recentemente).
O terceiro e último destaque é para a caricatura ambulante que Dennis Quaid imprime em sua performance, lembrando uma abordagem que poderia facilmente ter saído de algum filme dos irmãos Coen. Tudo o que o personagem de Quaid diz pode ser interpretado como "maldoso" - no mal sentido da palavra - e inconveniente, independente do que se é dito, como na cena em que demite a personagem de Moore, alegando o problema de sua idade "avançada" (mas, em seguida, vai se encontrar com outro figurão, um homem com ainda mais idade que ela ou ele próprio - porque mulheres com cabelos brancos são inapropriadas em determinados papeis mas homens mais velhos se tornam até "charmosos"?). Quaid interpreta tudo com uma "canastrice" ideal para o papel - e, é bom salientar, era pra ter sido interpretado por Ray Liotta (1954-2022), contratado ainda em 2022, mas que não pôde assumir o papel por ter falecido antes do início das filmagens (esse é o motivo da menção de seu nome nos agradecimentos nos créditos finais).
Já a trilha sonora de Benjamin Stefanski - mais conhecido como Raffertie (de séries como "O Continental - Do Mundo de John Wick" e "I May Destroy You" - traz o melhor da música eletrônica mas consegue um casamento perfeito com a urgência da trama (principalmente o tema principal do filme), principalmente no terço final.
A design de produção de Stanislas Reydellet (do recente "Baile das Loucas"), com a direção de arte de Gladys Garot (de "Jackie"), os cenários da dupla Cécilia Blom (de "O Tesouro do Pequeno Nicolau") & Marion De Villechabrolle (da série "A Fúria de Paris") e o figurino de Emmanuelle Youchnovski (de "O Livro dos Sonhos") compõem muito bem essa dicotomia entre "universos" pelos quais as personagens transitam.
"A Substância" revela que o melhor que uma mulher pode trazer ao mundo por conta do que gostaria mas do que lhe é imposta pode dar muito errado com o passar do tempo. É um filme que não só critica ferrenhamente a indústria da beleza mas também de como mulheres são tratadas para agradar e não para "ser". Independente de se gostar ou não do polêmico final, trata-se de um libelo que traz reflexão para tempos tão preocupados com visual e cada vez menos com conteúdo. Vale cada segundo de exibição.
Kal J. Moon não entende por que Demi Moore aparece nua em "A Substância" mas não em "Striptease"...
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